A música como um belo refúgio
Uma playlist com as músicas e compositores citados em BÚSSOLA
“A música é um belo refúgio contra a imperfeição do mundo e a decadência do corpo.” Em Bússola, é assim que Franz Ritter, musicólogo apaixonado pelo Oriente Médio, nos apresenta sua vocação musical. Durante uma noite insone, ele nos transportará para uma grande viagem de memórias pelas ruas de Istambul, Alepo, Damasco, Palmira e Teerã. Com base nessa sua jornada, organizamos uma playlist com músicas e compositores citados e inspirados no universo musical do livro.
"A existência é um reflexo doloroso, um sonho de opiômano, um poema de Rumi cantado por Shahram Nazeri, o ostinato do zarb faz vibrar ligeiramente a vidraça atrás de meus dedos, como o couro da percussão, eu deveria prosseguir minha leitura em vez de olhar para o sr. Gruber desaparecendo na chuva, em vez de prestar atenção ao rodopio dos melismas do cantor iraniano, cuja força e cujo timbre poderiam fazer vários tenores nossos corar de vergonha."
"Felizmente havia Istambul, e Bilger, e Faugier, e o ópio que nos abria a porta da percepção – minha teoria sobre a iluminação de Liszt em Constantinopla surgia das Harmonias poéticas e religiosas, e principalmente da Bênção de Deus na solidão, que ele compõe em Woronince, pouco depois da temporada em Istambul; a “adaptação” musical do poema de Lamartine respondia à pergunta dos primeiros versos, “D’où me vient, ô mon Dieu! cette paix qui m’inonde?/ D’où me vient cette foi dont mon coeur surabonde?”, e eu estava intimamente convencido de que ela tinha a ver com o encontro da luz oriental, e não, como os comentaristas costumavam descrever, com uma lembrança amorosa de Marie d’Agoult “repisada” para a princesa Carolina de Sayn-Wittgenstein."
Harmonies poétiques et religieuses III, S. 173: No. 3, Bénédiction de Dieu dans la solitude – Franz Liszt, Paolo Vergar
"Uma música árabe dessa vez digerida, e não mais um elemento exógeno encenado para criar um efeito exótico, mas pura e simplesmente uma possibilidade de renovação: uma força de evolução, não uma revolução, como ele mesmo afirmava tão justamente. Não lembro se em Tübingen eu já conhecia os poemas de Hafez e O canto da noite musicado a partir dos versos de Rumi, a obra-prima de Szymanowski – acho que não."
"Um bonde passa sacolejando embaixo de minha janela, mais um que desce a Porzellangasse. Os bondes que sobem são mais silenciosos, ou talvez, simplesmente, haja menos deles; quem sabe, é possível que a prefeitura deseje trazer os consumidores para o centro sem se preocupar de, em seguida, levá-los de volta para casa. Há algo musical nesses sacolejos, algo de Le Chemin de fer, de Alkan, mais lento, Charles-Valentin Alkan, mestre esquecido do piano, amigo de Chopin, Liszt, Heinrich Heine e Victor Hugo, de quem se conta que morreu esmagado por sua biblioteca ao apanhar o Talmud numa prateleira. (...) Em todo caso, seu Le Chemin de fer para piano é absolutamente virtuosístico, ouvimos o vapor, o rangido dos primeiros trens; na mão direita, é a locomotiva que galopa, na mão esquerda, são as bielas que rolam, o que produz uma impressão de multiplicação do movimento, juro, um tanto estranha, e a meu ver tremendamente difícil de tocar."
Le chemin de fer, Op. 27 – Charles-Valentin Alkan, Laurent Martin |
"No entanto, é preciso reconhecer, há algo de consolador na música de [Arvo] Pärt, algo desse desejo espiritual das massas ocidentais, desejo de músicas simples soando como sinos, de um Oriente em que nada da relação que une o homem ao céu tivesse se perdido, um Oriente aproximado de um Ocidente pelo credo cristão, um resíduo espiritual, uma casca para tempos de desamparo – qual canção de ninar para mim, então, eu deitado no escuro, aqui e agora, quando sinto medo, sinto medo, sinto medo do hospital e da doença: tento fechar os olhos mas receio esse cara a cara com meu corpo, com os batimentos de meu coração que vou achar rápidos demais, as dores que, quando nos interessamos por elas, se multiplicam em todas as dobras da carne."