A morte sem canibalismo

Por Aparecida Vilaça

Autora de PALETÓ E EU, a antropóloga Aparecida Vilaça recorda a despedida de seu pai indígena em trecho do livro

Muitas vezes, desde que o via ficando mais e mais velho, me peguei pensando se seria capaz de chorar a sua morte do jeito que os Wari’ fazem, com um canto em que se alternam crises de choro e uma fala cantada que celebra o morto. Quem vela se lembra, nesse canto, de episódios comuns, do que comeram juntos, dos cuidados que trocou com o morto durante a vida. Algumas pessoas, ao me verem ao seu lado, talvez reparando o meu olhar carinhoso em direção ao homem que havia me adotado como filha, pensavam o mesmo, e me perguntavam se eu estaria lá quando ele morresse.

Não estou. Ele morreu no interior de Rondônia e eu continuei aqui, tentando imaginar o seu corpo, os fios de barba brancos soltos no queixo, os braços fortes. Lembro de cada um desses detalhes com muita nitidez e não consigo imaginar nenhuma dessas partes sem vida. Elas se mexem, brilham, falam comigo.

Não importa a idade, talvez mais de 85 anos, o seu fim foi repentino para mim, mesmo diante da crescente debilidade que a doença de Parkinson lhe causava. Estava bem, comia milho com prazer, andava, disse-me sua filha Orowao Karaxu, minha irmã mais velha, com quem ele viveu nos últimos meses, na aldeia chamada Linha 26, a cerca de trezentos quilômetros da capital do estado, Porto Velho. Ao que parece, comeu uma carne estragada, adoeceu, desidratou-se e foi levado ao hospital da cidade de Guajará-Mirim pelo genro de Orowao. Chegou lá muito fraco. Pediu que me telefonassem, mas alguém sugeriu que deixasse para o dia seguinte, quando ele pudesse falar melhor. Paletó entrou em coma naquela mesma noite, com insuficiência renal, e morreu vinte e quatro horas depois, no mesmo hospital. Nunca mais nos falamos.

Talvez seja melhor dizer de outra forma: nunca mais ouvi a sua voz. Pois tenho a esperança de que ele tenha ouvido a minha, por meio do celular que pedi ao médico, o meu amigo Gilles de Catheu, o Gil, para segurar sobre o seu ouvido. Não sabia bem o que dizer, mas o que me ocorreu foi falar em wari’ (a única língua que ele compreendia) que eu estava pensando nele, sentindo a sua falta, que queria que ele aguentasse firme, que fosse forte, que meus filhos, seus netos, Francisco e André, estavam ao meu lado, também pensando nele. Gil me disse que ele não se moveu e não fez sinal algum de que tenha me ouvido, mas espero que a minha voz tenha chegado a ele.

Quem sabe — imagino agora — a sua fala tenha vindo, na verdade, antes da minha, pois na noite em que foi internado, sem que eu soubesse de nada ainda, sonhei com ele. Estava bonito e jovem, forte como sempre, com todos os dentes. Falava com a clareza de antes de ter adoecido. No sonho, eu me dizia admirada de seu estado jovem, e ele sorria orgulhoso. Quem sabe já era o seu duplo que havia chegado até mim, em sua forma jovem que vai habitar o mundo dos mortos, tradicionalmente situado, para os Wari’, debaixo d’água, no fundo dos rios — ou, desde que se tornaram evangélicos, no céu.

Acordei feliz com o sonho da noite, em que Paletó me apareceu jovem e saudável, pensando que nesse janeiro de 2017 fazia exatamente um ano que não o via, e que queria logo vê-lo novamente. No primeiro movimento depois de me levantar, ao abrir o celular, encontrei a mensagem de WhatsApp da Preta, funcionária da Funai e amiga de longa data, dizendo que infelizmente Paletó estava muito mal no hospital. Foi então que começaram as muitas ligações e mensagens, com informações detalhadas sobre o seu estado de saúde.

Recebi uma foto, na qual pude vê-lo sobre um colchão azul de plástico. Tinha a cabeça apoiada em panos enrolados e estava coberto com uma manta estampada de vermelho, sob a qual se via que as pernas estavam abertas, com os joelhos afastados e os pés aproximados, bem do jeito que ele gostava de dormir. Não tinha a dentadura na boca e por isso os seus lábios estavam afundados. “Ele que não gosta de ficar sem a dentadura!”, pensei, e depois fui saber, pela enfermeira, que a haviam removido para que ele não se engasgasse. Mais tarde, ao tratar do enterro pelo telefone, pedi que a recolocassem. Espero que o tenham feito.

Recebia informações que eu não sabia decifrar, mas que pareciam assustadoras, e liguei para um amigo médico no Rio. Queria saber o que significavam as taxas de ureia e creatinina “altíssimas”. Outras eram facilmente compreensíveis, como o fato de ele ter urinado somente cinquenta mililitros em vinte e quatro horas e, ainda por cima, com sangue. Gil, ao telefone, resumiu o quadro: estava em coma. Mas seu pulso batia forte, ele disse em seguida. Eu sabia que Paletó lutava. Já havia sobrevivido a tantas guerras, a epidemias variadas, visto tanta gente adoecer e morrer ao seu redor, que um dia, em minha última visita a ele, no final de 2015, me disse que eu não devia me preocupar com a sua saúde, porque ele “não sabia morrer”. Consegui o telefone das enfermeiras do hospital, fui tendo notícias mais detalhadas, dentre elas o fato de terem indicado uma hemodiálise em certo momento do dia, logo depois descartada por envolver a necessidade de uma viagem a Porto Velho, o que significava ter que passar cerca de quatro horas em uma ambulância. Na minha aflição a distância, ainda tentei convencer algumas pessoas, inclusive minhas irmãs, de que pensassem sobre essa possibilidade, que essa talvez fosse a única chance de ele sobreviver. Orowao, a mais velha, se mostrou em dúvida, e Ja, a caçula, foi veemente: não vamos levá-lo. Ela estava certa, pois foi quem estava ao lado dele algumas horas depois quando, saindo do coma, se sentou na cama, chamou pela filha Orowao, deitou-se novamente e morreu. Segundo Ja, às três da madrugada. Segundo o genro de Orowao, às cinco da manhã.

Foi com a mensagem dele, Julião, que eu acordei, às sete: Paletó faleceu. Difícil acreditar. Ainda o é hoje, um dia depois, quando começo a escrever este relato. Só consigo pensar nele vivo, tão vivo como sempre foi. O celular de Julião me levou à minha irmã mais nova, Ja, que então me colocou em meio ao canto fúnebre, tão conhecido por mim, mas tão estranho agora que me via impelida a participar como filha. Ja cantava e soluçava. Em seu canto chamava-me de Apa ou de irmã mais velha. Dizia ela que não aguentava tanto sofrimento, que nossa mãe havia morrido em agosto com a cabeça em seu colo, em uma canoa no meio do rio, e que agora perdíamos o pai. Pedia para eu ir para lá, mas logo depois concordava com meu argumento de que eu não conseguiria chegar a tempo, antes que o corpo fosse enterrado.

Como eu temia ao imaginar esse momento, as lágrimas escorriam pelo meu rosto, mas eu não conseguia cantar. Com tanta emoção, eu não era capaz de repetir a melodia que esperavam de mim, nem falar por meio do canto. Tudo o que consegui fazer foi falar, repetir sem parar que havíamos perdido o nosso pai, que tudo me lembrava dele na minha casa no Rio, onde ele passou alguns períodos memoráveis, ensinando-me muitas coisas, contando a sua história de vida e, sobretudo, fabulando sobre as novidades que via nesse mundo da cidade grande que lhe era tão estranho. “As pessoas aqui não dormem?”, perguntou-se certo dia ao reparar que as luzes das ruas e de alguns prédios não se apagavam nunca. “Como é possível um lugar sem sombras?”, ao visitar uma exposição no Instituto Moreira Salles, em que a iluminação era feita de tal forma que não havia sombras. “Ele vai morrer e você não se preocupa?”, ao ver pela primeira vez meu enteado Gabriel surfar na Barra.

Continuei com Ja, minha irmã caçula, ao telefone. Cantando, ela me pediu comida para os meninos que chegavam para o velório. Cantando, me contou sobre a morte da mãe, poucos meses antes. Agarrada ao celular, eu só fazia me repetir, tão frustrada em não conseguir cantar nesse momento, mesmo o tendo imaginado tantas vezes. Ela então me liberou para ir, para desligar o telefone, que telefonasse para Gil pedindo que levasse comida, o que ele fez em seguida. Levou café e pão ao porto do rio Mamoré, onde choravam abraçados ao caixão. Ninguém tocou na comida, ele disse. Não se come ao chorar.

Deitada, olhando para o teto do meu quarto, remoía-me por não estar ali. E então pensei em algo que pudesse agradar a Paletó, caso ele pudesse presenciar a cena. Pedi que trocassem o caixão, que o colocassem em um caixão bonito e forrado. Que o vestissem com camisa social, calça e sapatos lustrosos de cadarço. Queria que olhassem para ele como alguém especial, que todos, não só os parentes, o vissem como o homem importante que foi, tão sábio, tão forte e tão bem-humorado, curioso, aberto. Um adulto que guardou o que há de melhor de sua criança, mesmo tendo visto tanta coisa triste, inclusive vários de seus parentes próximos serem alvejados e mortos por seringueiros, sessenta anos atrás. Eu lhe perguntei certa vez se não odiava os brancos por isso, todos nós brancos, e ele, gentil como sempre, me respondeu que eu e meus parentes não tínhamos nada a ver com isso, pois vivíamos muito longe. Sou-lhe grata por esse perdão.

Larissa, enfermeira, e Jôice, assistente social, lá longe em Guajará, foram à funerária, pediram a troca do caixão e me avisaram que o vestiriam de acordo com o meu pedido, com exceção dos sapatos, que não havia ali. Os mortos da funeráriavestiam somente meias. “Não é possível”, eu disse. “Ele tem que ir com sapatos bonitos!” No céu cristão, para onde Paletó desde alguns anos contava em ir, todos ficam bonitos e bem-vestidos e, muito especialmente, todos usam sapatos, item mais raro no vestuário wari’. Jôice comprou os sapatos. “Ele calça 39?” “Sim”, eu respondi, mas os seus dedos são muito abertos, de modo que sempre comprei para ele sapatos um número ou dois maiores. Quem sabe agora, ainda por cima, os seus pés estivessem inchados? Número 41. “Comprado!”, disse-me ela pelo WhatsApp.

O calor neste 10 de janeiro de 2017 no Rio de Janeiro está insuportável, e imagino o calor em Rondônia e a viagem que Paletó terá que fazer até o rio Negro, para a aldeia Ocaia iii, onde tinha a sua casa e onde vive a maior parte de seus filhos. Vim a saber então que o novo caixão incluía uma espécie de serviço vip, com o embalsamento do corpo e uma coroa de flores. Jôice, que comprou os sapatos, me telefonou da funerária dizendo que ele estava todo arrumado, no caixão bonito, bem-vestido e calçado. Tirou uma foto para me mostrar, mas lhe pedi que não a enviasse. Queria manter a lembrança do seu duplo jovem que me aparecera no sonho da antevéspera.

Um pouco depois recebi uma mensagem de Preta, agora com uma foto do caixão ao longe, com pessoas jogadas sobre ele chorando. Reconheci minha irmã Orowao recostada na parede, com ar exausto, e minha irmã Ja, abraçada ao caixão. A imagem é de uma dor cortante. Vi que um pano cobria o caixão fechado e ampliei a foto no meu smartphone para ver melhor. Parecia a bandeira de um time de futebol, branca e verde. Perguntei ao meu filho André, que estava ao meu lado e entende tudo de futebol, que bandeira era aquela, e ele imediatamente respondeu: “Do Palmeiras”. Terá sido um acaso? Paletó nunca ligou para futebol, e seu filho Abrão, até onde sei, é vascaíno. Mas o Palmeiras havia sido campeão brasileiro do ano de 2016 e talvez por isso tivessem interesse em uma bandeira do time. Será que quiseram dar ao Paletó um velório de campeão?

Soube que a voadeira (lancha a motor), de 40 hp, saiu do porto somente às 10h30, já com o sol alto. Fiquei imaginando a viagem, as paradas nas diversas aldeias no caminho para que os parentes de cada uma delas pudessem ver o morto, a chegada dramática, com um monte de gente esperando e chorando, inclusive três de seus filhos, Abrão, Davi e Main, que haviam decidido ficar e esperar. Vão passar a noite chorando, agora com o caixão aberto e o corpo disponível para ser tocado e abraçado. Talvez alguém se meta debaixo do corpo, e outros debaixo deste, formando uma pilha humana que se mantém até que o último perca os sentidos e seja retirado. Querem os cheiros, os líquidos, tudo o que o corpo ainda puder lhes oferecer.

No passado, um morto importante, por ter participado de muitas festas, era carregado nas costas de um homem vivo, e lhe era oferecida chicha de milho, uma bebida fermentada, alcoólica, como se faz com os convidados em uma festa. Logo depois, o seu duplo chegaria debaixo d’água, no mundo subaquático dos mortos, onde beberia mais chicha, oferecida por um homem de grandes testículos, chamado Towira Towira (“Testículo Testículo”). Cheio de chicha, o duplo vomitaria e seria levado à casa dos homens para um período de reclusão, como faziam os matadores. E era matador o que um homem morto se tornava para os Wari’, daí seu aspecto jovem e vigoroso, o mesmo do duplo de Paletó que tinha aparecido em meu sonho.

No passado, os mortos não eram enterrados, como será Paletó em seu caixão, no cemitério rio acima. O local foi inaugurado pelos missionários evangélicos norte-americanos da New Tribes Mission, que chegaram à região do rio Negro em 1961 para ajudar no que chamaram “a pacificação” dos Wari’, e que até hoje vivem em algumas aldeias. Antes, o corpo de Paletó estaria livre dos limites do caixão, no colo dos parentes, enquanto outras pessoas preparavam o fogo que iria assá-lo. Dois, três dias se passavam até que todos chegassem de suas aldeias, para ver o corpo ainda íntegro, abraçar-se a ele, colocar-se sob ele. Alguns dos mais próximos, inconformados com a morte, aproveitariam a distração dos demais para se jogarem no fogo, tentando, por meio de sua própria morte, se juntar ao parente querido nesse mundo debaixo d’água para onde todos iam. Geralmente eram resgatados por alguém mais atento e sobreviviam. Alguns chegavam a morrer.

Lembro-me de Paletó mostrando-me esse movimento, numa das diversas vezes em que teatralizou para mim o funeral, para que eu pudesse entendê-lo e registrar as etapas da cerimônia, filmando sua encenação. Estávamos na sala de meu apartamento no Rio de Janeiro. Eu, ele e Abrão. Duas cadeiras unidas por cabos de vassoura faziam as vezes do moquém funerário. Um jornal amassado sob elas era o fogo. Um boneco de plástico, com pernas, braços e cabeça removíveis, que havíamos comprado em uma loja barata no centro da cidade, era o morto.

Paletó fazia questão de que eu participasse ativamente, não só filmando, para que aprendesse direito os detalhes do ritual. Ele me ensinava os papéis dos dois grupos envolvidos no funeral: como parente do morto, eu devia chorar, andar agachada e, cantando (vejam, eu já havia até mesmo ensaiado o canto que não pude cantar quando foi preciso!), pedir aos não parentes, um a um, que comessem o morto. Já na atuação como não parente, ensinava-me a pegar a carne assada partida em pedacinhos (substituída ali por pão) e, com o auxílio de palitos, levá-la à boca delicadamente, mostrando-me gentil com os parentes do morto que haviam me pedido para que o fizesse desaparecer, comendo-o. Os parentes não queriam mais ver o morto; estavam fartos de tristeza.

Promover o desaparecimento completo do corpo, cuja visão provocava imensa saudade e tristeza, era, para os parentes, a razão para que pedissem aos outros que o comessem, já que eles mesmos, cheios de lembranças do morto, que o tornavam ainda vivo em sua memória, não eram capazes de fazê-lo. Mas não era só o desaparecimento que os Wari’ buscavam ao solicitar que se comessem pedaços da carne de seus mortos, pois se quisessem poderiam simplesmente queimar o cadáver, alcançando assim o mesmo objetivo. Ao comerem, os não parentes mostravam aos enlutados que um cadáver não é mais gente, e que por isso podia ser comido. Davam início, assim, ao longo processo de elaboração do luto por parte dos parentes, que culminava com a capacidade de adotarem, eles também, a perspectiva dos não parentes, dos comedores, eliminando de sua memória a visão humana do morto.

Naquela encenação, eu e Abrão nos revezávamos nos papéis de quem chora e de quem come, e também de quem filma. Rapidamente, Abrão aprendeu a manejar a câmera, e a estabilidade da imagem só era perdida quando nós três tínhamos acessos de riso, um deles justamente quando Paletó tentava jogar-se no fogo-jornal e Abrão precisava resgatá-lo.

Paletó me disse várias vezes que tinha muita dificuldade de comer carne de gente, que ela em geral tinha um cheiro muito forte, uma catinga mesmo. Contou-me como certa vez os parentes de uma mulher chamaram-no, ainda rapaz, para que ele comesse da sua carne. Paletó disse que até tentou, comeu um pouco, mas depois correu para longe a fim de vomitar. Imagino que, por se tratar do cadáver de uma mulher adulta, estivesse bastante apodrecido, pois esperavam por dias a chegada de todos os parentes antes de cortar e assar o morto.

Em nossas filmagens, Paletó falava muito disso, e, numa das cenas em que eu comia a carne do boneco morto, me fez virar para o lado e fingir que vomitava. Não se devia fazer isso na frente dos parentes do morto, pois era uma indelicadeza. Mas indelicado mesmo era comer da carne com avidez, como se come caça. Imediatamente após a morte, o cadáver ainda não é animal e, embora seja isso que ele se tornará depois, era preciso respeitar a perspectiva dos parentes, que o viam ainda como gente, como se estivesse vivo, do mesmo modo que eu agora vejo Paletó em minhas lembranças. O risco de tal gafe, de comer a carne demonstrando prazer, era maior quando a carne era assada antes de estar apodrecida, como era o caso de crianças falecidas, que tinham um velório abreviado.

No passado, tudo era comido, o corpo era consumido completamente, de modo que não restasse nada da carne do morto. Se por acaso algo sobrasse, era jogado ao fogo, juntamente com os ossos, para ser queimado e desaparecer. Também eram queimados todos os pertences do morto, além de sua casa, sua roça, os troncos onde se sentava nos caminhos da floresta. Os Wari’ chamavam esse ato de destruição de “varrer”, varrer tudo do morto, o que incluía a raspagem dos cabelos dos entes queridos, que haviam sido tocados por ele.

Certa vez Paletó me disse que se eu morresse ele choraria muito, rasgaria as roupas que eu lhe tinha dado e as jogaria no fogo. Fico pensando no que farão hoje com os pertences do Paletó, sua maleta, sempre com ele, suas roupas, o cachecol vermelho que eu lhe dei faz tempo, cobertas, shorts. Será que vão destruí-los? Ou então vão dar ou vender para alguém, como costumam fazer atualmente com bens mais duradouros, como rádios e tvs? Antes essa não era uma questão, disse-me certa vez sua esposa, To’o Xak Wa, pois os bens duradouros limitavam-se a panelas de barro, que eles quebravam e jogavam no fogo que assava o morto.

Paletó não tinha mais uma casa própria, nem tantos bens assim, pois vivia — na companhia da esposa, até a morte dela — ora com um filho, ora com outro, que cuidavam dos pais e os alimentavam. Nos últimos anos, estava bastante debilitado pelo Parkinson. Costumava dizer que o seu enfraquecimento decorrera de uma queda na água, quando pescava sozinho em uma canoa. Sem saber nadar, quase morreu afogado, e foi resgatado desfalecido por um de seus filhos. Desde então, tremia muito, como se o frio da água tivesse afetado indelevelmente o seu corpo.

As fotos que acabo de ver no meu computador, feitas em 2015, quando o vi pela última vez, o mostram cantando, rindo, mas de olhos fechados quase sempre. O que ele não queria ver? Esse homem viveu pelo menos trinta anos na floresta, sem contato com os brancos, a não ser nos ataques guerreiros, e sem conhecer quaisquer dos bens de nossa civilização, a não ser pelas ferramentas de metal, que obtinham em casas de seringueiros vazias. Viu chegar os brancos, as doenças, as comidas estranhas e as roupas. Contam que depois de rejeitar se cobrir com o que lhe ofereciam, finalmente encantou-se com um paletó, e o adotou sobre o seu corpo nu. Foi quando ele, que se chamava Watakao’, passou a ser conhecido por Paletó. Com o seu paletó viajou por outras aldeias e conheceu a cidade de Guajará-Mirim. Chegou ao Rio de Janeiro, conheceu o telefone e a internet, e o vejo agora, numa foto em meu mural, falando comigo no Skype quando estava em Guajará-Mirim, na casa do Gil, que o fotografou. Será que os olhos fechados o levavam a essas imagens do passado? Às vezes lembrava-se de algo de uma de suas visitas ao Rio e me contava rindo, como quando viu um hipopótamo no Jardim Zoológico e ficou impressionado em saber que não comíamos aqueles animais, e nem mesmo os pombos que apareciam em quantidade nas praças, ou os macacos da Floresta da Tijuca. Surpreendia-se por eu dar ao meu filho peixe cru: não tinha medo de que ele fosse comido por uma onça que farejasse o cheiro de sangue? “Mas não há onças aqui na cidade, meu pai!” “Ah, e esses cachorrões enormes? Você acha que eles não farejam sangue?”

Como no passado, meus parentes, lá no rio Negro, vão ficar em luto por muito tempo, chorando e cantando a melodia fúnebre todos os dias, lembrando-se, por meio dela, das ações do morto, Paletó, de seus cuidados, do alimento que dava aos parentes. Quase não vão comer, vão emagrecer e ficar muito roucos. No passado, depois de meses, um parente próximo decidia terminar o luto, convidando a todos para uma caçada de alguns dias. Voltavam carregados de cestos, repletos de animais mortos e já assados, e entravam na aldeia na mesma hora do dia em que a morte havia ocorrido. Choravam agachados em torno dos cestos do mesmo modo como choravam os mortos, cantando a melodia fúnebre e lembrando-se de seus feitos, de seus pequenos atos de cuidado em relação a eles. Choravam não só aquele morto, mas outros também, aqueles de que ainda se lembravam. E então todos comiam as presas moqueadas, rindo e chamando-as de cadáver. “Quer um pedaço de cadáver?”, alguém diria, puxando um tasco para oferecer ao outro. Sem palitos, sem cuidados. Era cadáver, mas também, agora sim, era caça. Uma transformação havia ocorrido e por isso celebravam. O morto, ao ser comido como caça, finalmente saía do mundo dos vivos, da lembrança das pessoas.

Paletó não será comido. Talvez até desejasse isso, pois os Wari’ tinham horror ao enterramento, em saber que o corpo continuaria ali sob a terra por muito tempo. Mas sei que Paletó temia que, sem um corpo íntegro, não pudesse ressuscitar e ir ao céu para viver próximo a Deus. Em 2001, em meio ao revivalismo cristão que se sucedeu ao ataque ao World Trade Center, que puderam ver na televisão comunitária, e que lhes suscitou o medo do fim do mundo iminente, ele havia se convertido ao cristianismo dos missionários. Não queria mais ir para o mundo subaquático, mas para o céu, onde estariam todos os demais que morreram já cristãos.

Hoje eu queria muito que esse céu, para onde ele almejava ir, existisse, só para receber Paletó, bem-vestido como foi, e com seus sapatos de cadarço. Chegando, certamente ia ser admirado por todos — e, quem sabe, o próprio Deus, que nunca aparece para aqueles que estão no céu, até possa abrir uma exceção para vê-lo chegar.

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Aparecida Vilaça é doutora em antropologia social e professora do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em julho, participa da Flip - Festa Literária Internacional de Paraty, dia 11 (quinta-feira), às 10h30, na mesa Bendegó. Saiba mais aqui.

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