Trecho do livro
Eu estava pensando em como Jennifer Moreau tinha me dito que eu nunca poderia descrever sua beleza; nem para ela, nem para qualquer outra pessoa. Quando perguntei por que tinha sido silenciado dessa maneira, ela respondeu: “Porque você só tem palavras antigas para me descrever”. Eu estava com isso na cabeça quando pisei na faixa de pedestre com suas listras brancas e pretas diante das quais todos os veículos devem parar para permitir que os transeuntes atravessem a rua. Um carro estava vindo na minha direção, mas não parou. Tive que dar um pulo para trás e caí em cima do quadril usando as mãos para me proteger da queda. O carro paro
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Eu estava pensando em como Jennifer Moreau tinha me dito que eu nunca poderia descrever sua beleza; nem para ela, nem para qualquer outra pessoa. Quando perguntei por que tinha sido silenciado dessa maneira, ela respondeu: “Porque você só tem palavras antigas para me descrever”. Eu estava com isso na cabeça quando pisei na faixa de pedestre com suas listras brancas e pretas diante das quais todos os veículos devem parar para permitir que os transeuntes atravessem a rua. Um carro estava vindo na minha direção, mas não parou. Tive que dar um pulo para trás e caí em cima do quadril usando as mãos para me proteger da queda. O carro parou e um homem abaixou o vidro. Estava na casa dos sessenta anos, cabelo branco, olhos escuros, lábios finos. Perguntou se estava tudo bem comigo. Como não respondi, ele saiu do carro. “Peço desculpa”, ele falou. “Você começou a atravessar na faixa e eu diminuí a velocidade, pronto para parar, mas daí você mudou de ideia e voltou para o meio-fio.” As pálpebras dele tremiam nos cantos. “E daí, sem aviso, você se jogou no cruzamento.” Sorri com sua reconstrução cuidadosa da história, obviamente narrada de um ponto de vista favorável a ele. Deu uma olhadinha disfarçada no carro para ver se não havia nenhuma avaria. O espelho retrovisor estava despedaçado. Seus lábios 10 finos se abriram e ele soltou um suspiro pesaroso, balbuciando algo a respeito de ter encomendado o espelho de Milão. Eu tinha passado a noite toda em claro, redigindo uma palestra sobre a psicologia dos homens tiranos, e tinha começado pela maneira como Stálin flertava com as mulheres atirando pão nelas por cima da mesa de jantar. Minhas anotações, umas cinco folhas de papel, tinham caído da minha bolsa de couro a tiracolo junto com um pacote de camisinhas, só para me deixar envergonhado. Comecei a recolher tudo. Havia um pequeno objeto retangular e chato na rua. Reparei que o motorista olhava fixo para os nós dos meus dedos quando lhe entreguei o objeto, que estava quente e parecia vibrar na palma da minha mão. Como não era meu, achei que fosse dele. Pingava sangue dos meus dedos. Minhas palmas das mãos estavam raladas e havia um corte no nó de um dedo da mão esquerda. Suguei o corte enquanto ele me observava, claramente perturbado. “Precisa de uma carona?” “Está tudo bem.” Ele se ofereceu para me levar até uma farmácia para “limpar a ferida”, como ele disse. Quando balancei a cabeça, estendeu a mão e tocou no meu cabelo, um gesto estranhamente reconfortante. Perguntou qual era o meu nome. “Saul Adler. Olhe, é só um arranhão. Minha pele é fina. Sempre sangro muito, não é nada.”