“Um romance com ecos de Kafka.”
The Economist
Trecho do livro
Escrever: um ato estranho. Quando olhei para a frase que havia acabado de colocar no papel, senti vertigem. Onde estou agora? Entrei em minha história e desapareci nela. Para voltar, afastei meu olhar do manuscrito e deixei-o focar na janela até que eu finalmente estivesse de volta ao aqui e agora. Mas onde é o aqui? E quando é o agora?
A noite tinha atingido sua peculiar profundidade. Parei na janela do meu quarto de hotel e olhei para a praça lá fora, que lembrava um palco, talvez pela luz circular que um poste criava ao redor de si. Um gato dividiu a luz em dois com seus passos imponentes. Na vizinhança, predominava um silêncio [leia mais]
Escrever: um ato estranho. Quando olhei para a frase que havia acabado de colocar no papel, senti vertigem. Onde estou agora? Entrei em minha história e desapareci nela. Para voltar, afastei meu olhar do manuscrito e deixei-o focar na janela até que eu finalmente estivesse de volta ao aqui e agora. Mas onde é o aqui? E quando é o agora?
A noite tinha atingido sua peculiar profundidade. Parei na janela do meu quarto de hotel e olhei para a praça lá fora, que lembrava um palco, talvez pela luz circular que um poste criava ao redor de si. Um gato dividiu a luz em dois com seus passos imponentes. Na vizinhança, predominava um silêncio transparente.
Nesse dia, participei de um congresso. Ao final, todos os participantes foram convidados para um jantar comemorativo. Quando voltei para o hotel, à noite, tinha uma sede de ursa, que saciei tomando água direto da torneira. O gosto das anchovas oleosas não queria deixar minha boca. No espelho, vi minha boca manchada de vermelho. Era o trabalho magistral da beterraba. Eu não gostava muito de raízes, mas quando as via nadando em um borsch só queria beijá-las. Com as ilhas de gordura, que me abriam o apetite para carne, a beterraba parecia irresistível.
As molas rangeram sob meu peso de ursa. Sentei no sofá e pensei que a conferência tinha sido, de novo, desinteressante, mas me levara inesperadamente de volta à minha infância. O tema da discussão era a importância da bicicleta para a economia nacional.
Qualquer um, especialmente um artista, tinha de assumir que ser convidado para uma conferência era uma armadilha. Por isso, a maioria dos participantes não queria se pronunciar, a menos que fossem obrigados. Já eu participava por vontade própria, levantando minha pata direita de forma consciente, elegante, desenvolta e sem rodeios. Todos os outros no auditório olhavam para mim. Eu já estava acostumada a atrair a atenção de toda a plateia.
A parte superior do meu corpo, macia e corpulenta, é envolvida por pelo branco. Quando levanto meu braço e movo meu tórax um pouco para a frente, centelhas de luz estonteantes voam no ar. Eu me encontrava em meio à ação, enquanto as mesas, as paredes e até as pessoas presentes empalideciam lentamente e se confundiam com o plano de fundo. A cor branca e brilhante de meu pelo se diferencia do branco comum. É permeável. Assim, a luz do sol podia atravessar o pelo e alcançar minha pele, sob a qual era cuidadosamente conservada. Essa é a cor dos meus antepassados, que permitiu que sobrevivessem no círculo ártico.
Para expressar uma opinião, é preciso ser visto pelos coordenadores. Para isso, deve-se levantar a mão rapidamente, mais rápido do que os outros. Quase ninguém consegue levantar sua mão tão rápido numa conferência quanto eu. “Aparentemente você ama expressar sua opinião.” Uma vez ouvi esse comentário irônico. Contra-ataquei com um simples: “Este é o princípio básico da democracia, não é?”. Apesar disso, nesse dia concluí que não era minha livre expressão, e sim uma espécie de reflexo que fazia minha pata levantar rapidamente. Esse reconhecimento me causou uma pontada no peito. Eu tentava afastar essas dores de mim e me encontrar de novo em meu ritmo habitual, que era de compasso quaternário: a primeira batida era o tímido “Por favor” do coordenador, a segunda batida era a palavra “Eu”. Eu jogava essa palavra em cima da mesa. Na terceira batida todos os ouvintes engoliam em seco, e na quarta batida eu arriscava um passo corajoso em que eu dizia “acho” claramente. Para que tudo entrasse no compasso, eu acentuava, obviamente, a segunda e a quarta batidas.
Eu não pretendia dançar, mas meus quadris começavam a se balançar de um lado para outro na cadeira. A cadeira dançava junto e rangia contente. Cada sílaba acentuada era como uma batida em um tamborim, que ritmizava minha fala. Os outros me ouviam como se enfeitiçados, esqueciam suas obrigações, vaidades e a si mesmos. Os lábios dos homens pendiam flácidos, seus dentes brilhavam em um branco cremoso, da ponta de suas línguas pingava algo como sua corpulência liquidificada em forma de saliva.
“A bicicleta é sem dúvida a maior invenção da história da civilização. É a flor do picadeiro, o herói de toda a política ecológica. No futuro próximo, todas as grandes cidades serão dominadas por bicicletas. Não somente isso: todo lar terá seu próprio gerador, que estará conectado a uma bicicleta. Então poderemos nos exercitar e produzir energia ao mesmo tempo. Poderemos também simplesmente montar na bicicleta para visitar nossos amigos, em vez de ligar ou enviar um e-mail. Quando usarmos a bicicleta de forma multifuncional, vários aparelhos eletrônicos vão se tornar supérfluos.”
Eu via que uma nuvem negra se formava sobre alguns rostos. Colocava ainda mais força na minha voz e continuava: “Vamos pedalar até um rio e lá lavaremos nossas roupas. Vamos pedalar até a floresta e lá juntaremos lenha. Não precisaremos mais de máquinas de lavar, não dependeremos mais de energia ou gás para aquecer a casa ou preparar a comida”. Alguns rostos se divertiam com meu turbilhão de pensamentos e mostravam sorrisos contidos, enquanto os outros se petrificavam, acinzentados. Não tem problema, eu me encorajava, não se deixe envergonhar! Não preste atenção aos entediados! Relaxe! Ignore o público falso à sua frente, imagine centenas de sorrisos amigáveis e continue a falar. Isto é um circo. Toda conferência é um circo.