Trecho do livro
A estrutura do banheiro é minúscula e a essa hora do dia já cheira um pouco mal, pelo uso constante das últimas horas; mesmo com os produtos de limpeza e com a circulação do saco de lixo de tempos em tempos, já começa agora a incomodar pelo acúmulo do ar; como numa longa viagem de ônibus, o cheiro se espalha um pouco no entorno, mas é ainda possível fingir que não, de modo que tudo segue seu ritmo cotidiano, numa passada rápida e desatenta. Por isso entra rápido, sem deixar a porta de todo aberta, entra com uma fisgada do pescoço, que desce pela coluna e trava quase o começo da lombar, numa peça inteira que não consegue mais olhar p
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A estrutura do banheiro é minúscula e a essa hora do dia já cheira um pouco mal, pelo uso constante das últimas horas; mesmo com os produtos de limpeza e com a circulação do saco de lixo de tempos em tempos, já começa agora a incomodar pelo acúmulo do ar; como numa longa viagem de ônibus, o cheiro se espalha um pouco no entorno, mas é ainda possível fingir que não, de modo que tudo segue seu ritmo cotidiano, numa passada rápida e desatenta. Por isso entra rápido, sem deixar a porta de todo aberta, entra com uma fisgada do pescoço, que desce pela coluna e trava quase o começo da lombar, numa peça inteira que não consegue mais olhar pra trás, num corpo grosso, escuro, que se mexe por inteiro, sólido, maciço, numa superfície rija; foi de lado pela fresta da porta de madeira pintada de uma cor rosa que não consegue definir nos padrões das lojas de tinta, poderia ser rosa-queimado, rosa-bebê, outra coisa do gênero, o que pouco importa de fato, já que quase nenhum frequentador se dá ao trabalho de analisar a combinação de cores que tomou tanto tempo de quem a decidiu. Com certo esforço, abre-se o botão da calça, um pouco apertada para o quadril, a ponto de deixar uma marca que atravessa a parte de baixo da barriga, como um cinto na pele, uma ruga reta e circular, um contorno quase ao meio do corpo como uma ruga ao centro. Com a liberdade do espaço e da roupa, o rosto se molda em outra carga, algo da ordem do alívio, mesmo que haja um aperto nas entranhas, senta-se, solta-se, apoia-se o cotovelo na coxa, o queixo na mão, e a vista encara o vazio à frente, mais precisamente a pia quase colada à privada, num espaço miúdo; o tempo é curto e os gases saem discretos, na medida do possível; a cena é toda de banalidade e serve apenas como realismo barato e necessário de um corpo ao mesmo tempo frágil e robusto. Mas tudo estanca num ventre preso, o corpo, como tudo, emperra e assim se mostra; recusa o fluxo fácil e, porque emperra, mais existe, longe da mente que o controla e que o sonha como posse simples, quinhão e sina. A urina desce naquele ruído leve de águas, o cotovelo se desdobra lentamente, a mão procura pouso no outro joelho, reenquadrando a cena, a perna direita se estica enquanto o tronco busca pouso e encosta na caixa da descarga; as costas, se tivessem um som de voz, rangeriam, mas mal estalam, sobretudo doem, intransitivas; um olho pisca, demora-se fechado, busca o úmido de si, ardido; a língua faz um movimento para engolir em seco a saliva parada; um dente ameaça começar sua pontada; cada parte parece ser própria, e um todo não se divisa mais, porém retorna, se empina, sobe calcinha e calça, ajusta-se de novo à roupa, vira-se, aperta, escuta a descarga, segue lento para fora.