Trecho do livro
Dona Lyda era considerada por seus colegas de trabalho uma pessoa sensível, bem-humorada e senhora de uma capacidade prodigiosa para detalhes – motivo que a fazia ser tida como a memória viva do escritório. Aos dezesseis anos, sua mãe lhe dera alguns trocados para o almoço e quatrocentos réis para a passagem na barca de Niterói, prestes a começar num emprego novo que seria o mesmo lugar onde, quarenta anos depois, continuava trabalhando: a sede carioca da Ordem dos Advogados do Brasil. Naquele início de tarde de agosto, estava a três meses de completar sessenta anos, e por muito tempo adiara a ideia de se aposentar. Não podia conceb
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Dona Lyda era considerada por seus colegas de trabalho uma pessoa sensível, bem-humorada e senhora de uma capacidade prodigiosa para detalhes – motivo que a fazia ser tida como a memória viva do escritório. Aos dezesseis anos, sua mãe lhe dera alguns trocados para o almoço e quatrocentos réis para a passagem na barca de Niterói, prestes a começar num emprego novo que seria o mesmo lugar onde, quarenta anos depois, continuava trabalhando: a sede carioca da Ordem dos Advogados do Brasil. Naquele início de tarde de agosto, estava a três meses de completar sessenta anos, e por muito tempo adiara a ideia de se aposentar. Não podia conceber sua rotina sem o movimento do escritório ou a companhia dos colegas, mas agora a idade começava a cobrar seu custo, com as inevitáveis dores que trazia. Consultou o relógio: dez para as duas da tarde. Abriu uma gaveta em sua mesa e nela guardou o livro que vinha lendo – tinha o hábito de selecionar passagens interessantes de textos e poemas lidos, redigi-los e entregá-los aos colegas. Ela era dessas pessoas que gostava de ser gentil com os demais. Consultou o relógio: quase duas da tarde. Dali a pouco o pessoal retornaria do almoço. Ocorreu-lhe verificar se havia café passado na cafeteira. Quando ela própria voltava para sua mesa com uma xícara em mãos, entrou um rapaz na sala. Tinha cerca de trinta anos, vestia calça e camisa social do mesmo modo que tantos outros nos escritórios ao redor. Entregou um envelope de papel pardo, endereçado ao doutor Seabra Fagundes, chefe de dona Lyda. Ela perguntou se precisava assinar algum protocolo de recebimento, o rapaz disse que não e foi embora. Ela soprou o café e bebeu um gole. Ainda estava muito quente. Seu chefe era um dos principais defensores da anistia aos exilados políticos da ditadura, mas estava fora da cidade. Ela concluiu que seria melhor abrir logo o envelope e verificar sua urgência, antes de deixá-lo na sala do doutor Seabra. Correu os olhos pela mesa, em busca de uma caneta. Escolheu uma de metal, mais resistente. Abriu o lacre do envelope. A mesa de dona Lyda encontra-se hoje exposta no memorial da sede da OAB de Brasília, recomposta e envolta numa faixa com as cores da bandeira nacional. O impacto que a rachou ao meio também arrebentou os vidros da janela, derrubou pedaços de reboco do teto, que ficaram pendurados por fios elétricos em curto-circuito, e deixou a sala destruída. A explosão da carta-bomba em suas mãos fez com que dona Lyda tivesse o braço arrancado, além de uma série de outros ferimentos graves, vindo a falecer pouco depois a caminho do hospital.