Trecho do livro
Vou te contar um troço. Senta aí. Dessas coisas que acontecem com um amigo. É, uma história. Você lança mão de avisos desse tipo antes de contar uma. Era uma vez, sabe como? Porque toda história é um trato e, anunciado assim, o acordo fica mais ou menos estabelecido. No cinema, por exemplo. Há muito tempo, numa galáxia muito, muito distante. Filmes são tratos que valem por cerca de duas horas. Você teve a ideia, selecionou e articulou os fatos, escreveu um roteiro, alguém gostou e produziu, filmou, montou, e aí exibe, e eu acredito, ou pelo menos tento. Acordo de cavalheiros. Suspensão voluntária da descrença, o nome. Romance, boato
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Vou te contar um troço. Senta aí. Dessas coisas que acontecem com um amigo. É, uma história. Você lança mão de avisos desse tipo antes de contar uma. Era uma vez, sabe como? Porque toda história é um trato e, anunciado assim, o acordo fica mais ou menos estabelecido. No cinema, por exemplo. Há muito tempo, numa galáxia muito, muito distante. Filmes são tratos que valem por cerca de duas horas. Você teve a ideia, selecionou e articulou os fatos, escreveu um roteiro, alguém gostou e produziu, filmou, montou, e aí exibe, e eu acredito, ou pelo menos tento. Acordo de cavalheiros. Suspensão voluntária da descrença, o nome. Romance, boato, biografia não autorizada, tudo trato. Essa coisa que vou te contar, por exemplo, desses troços que acontecem com um amigo. Era uma vez um homem, passageiro do voo TP184, que deixou Lisboa numa madrugada de inverno e chegou ao Rio de Janeiro numa tarde de verão. Vem a aeromoça com os procedimentos de desembarque, portas em manual, os bordões de despedida, e a história engrena. Não é a introdução perfeita, o avião, esse até loguinho, longe de ser o primor das aberturas, mas é uma opção. Se você pensa no trato, o mais difícil costuma ser o começo. Plantar a história, o termo. E pode ser uma boa imagem, essa, de plantar, mas não se você imaginar um grão, uma semente que você enterra, rega e coloca no sol para germinar, porque ninguém sabe direito de onde uma história brota, a gente cava e nunca encontra. Toda história é desde sempre, pensando bem, um fio que se emenda em outro, você puxa, não acaba, e puxa, mas nunca descobre como é que os pedaços se conectam, e, no subterrâneo dos acontecimentos, minimamente costurados, irrompem na superfície em forma de historinha.