“Um olhar lindamente fragmentado sobre o anseio do homem por permanência. Ambicioso e complexo.”
Washington Post
Trecho do livro
Estudei psicologia numa grande e sombria metrópole comunista. Minha faculdade ficava num prédio que funcionou como a sede de uma unidade da SS durante a guerra. Essa parte da cidade foi construída sobre as ruínas do gueto. Ao olhar atentamente, era fácil perceber isso — todo o bairro ficava um metro acima do resto da cidade. Um metro de escombros. Nunca me senti bem lá; ventava sempre entre os novos prédios e as míseras praças, e o ar gelado parecia especialmente penoso, fazia o rosto arder. E essencialmente, mesmo com os edifícios, continuava a ser um lugar que pertencia aos mortos. O prédio do instituto ressurge nos meus sonhos at [leia mais]
Estudei psicologia numa grande e sombria metrópole comunista. Minha faculdade ficava num prédio que funcionou como a sede de uma unidade da SS durante a guerra. Essa parte da cidade foi construída sobre as ruínas do gueto. Ao olhar atentamente, era fácil perceber isso — todo o bairro ficava um metro acima do resto da cidade. Um metro de escombros. Nunca me senti bem lá; ventava sempre entre os novos prédios e as míseras praças, e o ar gelado parecia especialmente penoso, fazia o rosto arder. E essencialmente, mesmo com os edifícios, continuava a ser um lugar que pertencia aos mortos. O prédio do instituto ressurge nos meus sonhos até hoje — os seus corredores largos esculpidos em pedra, lustrados com pés anônimos, as beiradas dos degraus desgastadas, os corrimões polidos com as mãos, rastros gravados no espaço. Talvez por isso fôssemos assombrados por espíritos. Quando soltávamos as ratazanas no labirinto, sempre havia uma cujo comportamento contrariava a teoria, zombando das nossas hipóteses inteligentes. Ficava sobre as duas patas, completamente desinteressada da recompensa no fim da rota experimental; desdenhava dos privilégios do reflexo de Pavlov, nos lançava um olhar e depois dava meia-volta ou se entregava sem pressa ao teste de labirinto. Procurava algo nos corredores laterais, tentava chamar a atenção para si própria. Guinchava desorientada e, nessas horas, contrariando as regras, as meninas a retiravam do labirinto e a seguravam no colo. Os músculos de uma rã morta, estirada, se dobravam e se estendiam sob o comando de impulsos elétricos, mas de uma forma ainda não descrita em nossos manuais — nos enviavam sinais, seus membros executavam gestos óbvios de ameaça e deboche, o que contrariava a fé consagrada na inocência mecânica dos reflexos fisiológicos. Lá nos ensinaram que o mundo pode ser descrito, ou mesmo explicado, por meio de respostas simples a perguntas inteligentes. Que em sua essência ele é inerte e morto, regido por leis relativamente simples que devem ser explicadas e explícitas — de preferência através de um diagrama. Exigiam que fizéssemos experiências. Que formulássemos hipóteses. E verificássemos. Nos iniciavam nos mistérios da estatística, acreditando que através dela era possível descrever, de uma maneira perfeita, todas as regularidades do mundo — e que noventa por cento é mais significativo que cinco. Mas se há uma coisa que eu sei agora é que aquele que procura a ordem deve evitar a psicologia. É melhor que opte pela fisiologia ou a teologia, pelo menos terá assim uma base sólida — podendo se apoiar ou na matéria ou no espírito; não escorregará na psique. A psique é um objeto de estudo muito incerto. Tinham razão aqueles que diziam que não se escolhia a psicologia por causa da profissão futura, da curiosidade ou da vocação para ajudar os outros, mas por outro motivo muito simples. Suspeito que todos nós tínhamos um defeito profundamente escondido, embora parecêssemos jovens inteligentes e saudáveis. O defeito estava oculto, camuflado habilmente nos exames de ingresso. Um novelo de emoções emaranhadas se desfazendo como aqueles estranhos tumores que de vez em quando são encontrados no corpo humano e que podem ser vistos em qualquer museu de anatomia patológica que se preze. Ou será que os nossos examinadores eram pessoas do mesmo tipo e na realidade sabiam o que faziam? Seríamos então os seus herdeiros. No segundo ano, quando falávamos sobre o funcionamento dos mecanismos de defesa e descobríamos, admirados, o poder dessa parte da nossa psique, começávamos a entender que se não existissem os mecanismos da racionalização, sublimação e repressão — todos aqueles truques aos quais recorremos —, e fosse possível olhar para o mundo sem nenhum tipo de proteção, sincera e corajosamente, os nossos corações explodiriam. Aprendemos naquela faculdade que somos compostos de defesas, escudos e armaduras, que somos cidades cuja arquitetura se resume a muralhas, paredes e fortificações: países de bunkers. Conduzíamos todos os exames, as anamneses e pesquisas entre nós mesmos, mutuamente. Assim, depois do terceiro ano da faculdade, eu já sabia dar um nome para o que havia de errado comigo; foi como descobrir o meu próprio nome secreto, o nome com o qual se invoca a iniciação. Não exerci a profissão para a qual me preparei por tanto tempo. Em uma das minhas viagens, quando fiquei presa sem dinheiro numa grande cidade e trabalhei como camareira, comecei a escrever um livro. Era uma história para ser lida em viagem, num trem — um livro que parecia ter sido escrito para mim mesma. Um livro-canapé para ser engolido de uma vez, sem mastigar. Eu conseguia focar e me concentrar, e por algum tempo me tornei um orelhão monstruoso que escutava ruídos, ecos e sussurros; vozes distantes vindas de trás de alguma parede. No entanto, nunca virei uma verdadeira escritora — ou, melhor dizendo, escritor, pois é nesse gênero que essa palavra soa melhor. A vida sempre me escapava. Topava apenas com os seus rastros, a pele que se desprendia. Quando conseguia determinar a sua localização, ela já estava em outro lugar. Achava apenas sinais, como aquelas inscrições sobre a casca das árvores nos parques: “Estive aqui”. Em minha escrita, a vida se transformava em histórias incompletas, contos oníricos, temas pouco claros, aparecia à distância em maravilhosas perspectivas deslocadas ou em cortes transversais — e era difícil tirar quaisquer conclusões referentes ao todo. Quem já tentou escrever um romance sabe quão árdua é a tarefa, definitivamente um dos piores tipos de ocupações autônomas. É preciso permanecer trancado dentro de si o tempo todo, numa cela individual, em total solidão. É uma psicose controlada, paranoia e obsessão algemadas para funcionarem, privadas de penas, anquinhas ou máscaras venezianas, pelas quais as conhecemos. Em vez disso, andam vestidas de avental de açougueiro e galochas, com uma faca para evisceração na mão. Desse porão do escritor se enxerga apenas as pernas dos que passam, e se ouve o barulho dos saltos batendo contra o chão. De vez em quando alguém para, se inclina e dá uma olhada para o interior. Nessas horas é possível ver um rosto humano e até trocar algumas palavras. No entanto, na verdade, a mente está ocupada com o jogo que ela mesma executa diante de si num panóptico esboçado às pressas com riscos a lápis, distribuindo as figuras num palco provisório — autor e protagonista, narradora e leitora, aquele que descreve e a personagem descrita; pés, sapatos, saltos e rostos, cedo ou tarde, meros componentes desse jogo. Não me arrependo de ter me dedicado a essa atividade particular: eu não seria uma boa psicóloga. Nunca soube como explicar, revelar fotografias de família da câmara escura das mentes. Lamento admitir, mas as confissões dos outros muitas vezes me deixavam entediada. Para ser honesta, com frequência preferiria inverter as relações e começar a falar sobre mim mesma. Precisava me vigiar para não segurar de repente uma paciente pela manga e interrompê-la no meio da frase: “O que a senhora está dizendo! Eu sinto isso de um modo completamente diferente! Aliás, deixe eu contar o sonho que tive!”. Ou: “O que o senhor sabe sobre a insônia? Realmente é isso o que chama de um ataque de pânico? Deve estar brincando. O ataque que eu tive não faz muito tempo, por outro lado…”. Não sabia ouvir. Não respeitava os limites, caía em transferências. Não acreditava nas estatísticas ou em verificação de teorias. O postulado de uma personalidade para uma pessoa sempre me parecia demasiado minimalista. Tinha a tendência a borrar o óbvio, pôr em dúvida os argumentos irrefutáveis — era um vício, uma ioga perversa do cérebro, um prazer sutil de experimentar um movimento interno. Suspeitar de cada julgamento, sentir o seu gosto debaixo da língua e descobrir, por fim, que nenhum deles estava certo, eram todos falsos, imitações. Não queria ter opiniões fixas, seriam uma bagagem desnecessária. Nas discussões, nunca me posicionava só de um dos lados, e sei que os meus interlocutores não gostavam de mim por causa disso. Estava consciente de um fenômeno estranho que se desdobrava em minha cabeça: quanto mais argumentos “a favor” eu achava, tanto mais argumentos “contra” me vinham à mente. E quanto mais eu me prendia aos primeiros, tanto mais atraentes me pareciam os segundos. Como poderia examinar os outros se eu própria tinha dificuldades em fazer qualquer teste? Diagnósticos de personalidade, pesquisas, várias colunas de perguntas e respostas de múltipla escolha me pareciam difíceis demais. Notei rapidamente essa minha deficiência, e por isso, quando examinávamos uns aos outros durante o estágio na faculdade, eu dava respostas aleatórias, ao acaso. Resultavam disso perfis estranhos — curvas em eixos de coordenadas. “Você acredita que a melhor decisão é aquela que pode ser mudada com a maior facilidade?” Será que eu acredito? Que decisão? Mudar? Quando? Com que facilidade? “Ao entrar num cômodo você toma a posição central ou periférica?” Em que cômodo? E quando? O cômodo está vazio ou junto da parede há sofás vermelhos de pelúcia? E as janelas — para onde dão? A pergunta sobre um livro: se eu prefiro ler em vez de ir a uma festa, ou se isso depende do tipo de livro e da festa em questão? Que metodologia é essa! Parte-se, tacitamente, da premissa de que as pessoas não conhecem a si mesmas, mas se você as munir de perguntas espertas o suficiente, elas serão capazes de se descobrir. Elas se farão uma pergunta e darão a si mesmas uma resposta. Então, sem querer, revelarão a si mesmas o segredo de cuja existência não sabiam até ali. E há aquela outra premissa, mortalmente perigosa — que somos constantes, e nossas reações são previsíveis.