Trecho do livro
Nunca tinha batido em ninguém, mas dei‑lhe uma bofetada, porque ela me irritou, porque não concordou comigo, porque eu é que sabia e mandava e estava certa, porque ela tinha dito uma mentira, porque me tinha roubado uma borracha, sei lá por que lhe dei a maldita bofetada!
Mas dei‑lha, na Escola Especial, no intervalo da manhã, encostada aos fundos da sala da 4ª classe. Uma parede branca. Era a Marília.
Foi premeditado. Tinha pensado antes, se ela voltar a irritar‑me, bato‑lhe. Podia perfeita e impunemente bater-lhe. Era mulata. E a rapariga comeu e continuou em pé, sem se mexer, com a mão na cara, sem nada dizer, fitando‑me com um
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Nunca tinha batido em ninguém, mas dei‑lhe uma bofetada, porque ela me irritou, porque não concordou comigo, porque eu é que sabia e mandava e estava certa, porque ela tinha dito uma mentira, porque me tinha roubado uma borracha, sei lá por que lhe dei a maldita bofetada!
Mas dei‑lha, na Escola Especial, no intervalo da manhã, encostada aos fundos da sala da 4ª classe. Uma parede branca. Era a Marília.
Foi premeditado. Tinha pensado antes, se ela voltar a irritar‑me, bato‑lhe. Podia perfeita e impunemente bater-lhe. Era mulata. E a rapariga comeu e continuou em pé, sem se mexer, com a mão na cara, sem nada dizer, fitando‑me com um estranho olhar magoado, sem um gesto de retaliação. Disse‑lhe, já levaste, e depois afastei-me para o fundo do pátio, absolutamente consciente da infâmia que tinha cometido, esse exercício de poder que não compreendia,
e com que não concordava. Não por ser uma bofetada, mas porque tinha sido à Marília. A Marília era um alvo fraco. Nada podia contra mim. Queixasse‑se, e depois?! Eu era branca. Quem poderia cantar vitória logo à partida?
Senti‑me muito mal. Depois. A experiência tinha‑me saído amarga. Bater nos mais fracos não era nada cristão. Jesus não o faria.
Não esqueci o rosto esguio e o belo cabelo crespo da Marília. Era mulata e não podia bater‑me. Não me lembro se cheguei a pedir-lhe desculpa. Acho que não.