Vidas em trânsito, ou a construção pelo que falta

Por Daniela Arrais

Daniela Arrais escreve sobre TRÂNSITO, novo livro da trilogia de Rachel Cusk.

 

Gosto de quem não dá muito de si logo de cara. Talvez porque eu costume fazer quase o contrário. Me surpreende quem cala e mais observa, deixando o interlocutor preencher os espaços vazios com uma verborragia de quem sente desconforto no silêncio — e parece que grande parte do mundo se encaixa nessa categoria de gente. 

Ler Rachel Cusk é trilhar uma descoberta a partir do que falta. Na ausência de informações sobre a personagem que protagoniza a trilogia, buscamos traços que nos expliquem quem é essa mulher para além do que nos é dito: mãe de dois filhos, divorciada, professora de literatura, moradora de Londres. 

Trânsito começa com um e-mail de uma astróloga dizendo a Faye, a protagonista, que tem notícias importantes com relação a acontecimentos de seu futuro próximo. “Foram os comentários da astróloga sobre crueldade que me fizeram recordar esse incidente, que na época parecera provar que, a despeito do que desejemos acreditar em relação a nós mesmos, somos apenas o resultado de como os outros nos tratam”, escreve. Ao longo dos capítulos, aparecem um ex-namorado, um mestre de obras que empreende uma reforma difícil na sua casa, uma amiga às voltas com problemas de autoimagem, um cabeleireiro, uma aluna ansiosa. O outro, sempre ele. 

As páginas passam, e não encontramos o rompante que levou à separação — apesar de tentarmos encaixar as marcas de uma dor do passado que tem espaço nas cenas dos próximos capítulos. Uma dor que provoca recolhimento, deixa-a em concha, como na capa de Esboço, o primeiro livro da série. “Ele havia tentado desenvolver a própria capacidade de perdoar para poder ser livre. Eu disse que para mim o perdão só parecia deixar você mais vulnerável àquilo que não conseguia perdoar”, escreve sobre um dos personagens que encontra — ou sobre ela mesma? Tampouco nos deparamos com uma preocupação maternal exacerbada. Sabemos que seus filhos estão com o pai e que um choro sobre uma chave perdida não a faz mudar de rota para acalmá-los. 

O livro se desdobra entre narração e diálogo, com uma costura de breves pensamentos cortantes. “Pensei na frequência com que as pessoas traíam a si mesmas por meio daquilo que reparavam nas outras”, escreve. “Passei muito tempo, falei, acreditando que apenas por meio de uma passividade absoluta fosse possível aprender a ver o que realmente existia. Mas minha decisão de criar uma perturbação ao reformar minha casa tinha despertado uma outra realidade, como se eu houvesse incomodado um animal adormecido dentro de sua toca”, completa.

Faye interage pouco, fala menos ainda, ouve com a sobriedade de uma analista. Em um mundo em que tanto nos é dado com facilidade (na velocidade das performances nas redes sociais), nos deparar com uma escrita que parece entregar menos sobre sua protagonista é apenas o começo de um paradoxo. Porque ao ler os dois volumes já publicados da série, Cusk nos ajuda a entender mais até sobre nós mesmos. Pelo não dito, pelo que escolhe revelar — e para quem. Um exercício sobre como contamos nossas histórias e como lidamos com o que nos cerca e provoca. Cusk conduz seus romances com a sagacidade de quem sabe misturar vida e ficção, criando uma personagem que nos conquista menos pelo carisma do que pelo mistério.

 

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Daniela Arrais é jornalista, sócia da Contente e autora do blog Don't Touch My Moleskine.

 


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