"Uma luta ombro a ombro pela cultura"

Por Antonio Candido

Figura central dos estudos literários no Brasil, Antonio Candido assina o prefácio de MÁRIO DE ANDRADE POR ELE MESMO, livro de Paulo Duarte sobre o modernista paulista. Neste post, confira o texto na íntegra.

 

Este livro importantíssimo é vivo, trepidante, apaixonado, feito na dimensão do movimento, como a personalidade do seu Autor. Livro sobre Mário de Andrade, é também sobre Paulo Duarte, e sendo sobre ambos, esclarece a respeito de uma geração decisiva para o desenvolvimento da cultura no Brasil. Raras vezes esta conheceu uma série equivalente de homens que pesaram tanto no seu destino e definiram com tamanho empenho os seus rumos quanto os homens nascidos entre mais ou menos 1890 e 1905, só comparáveis talvez, como coesão de equipe e amplidão de dotes, aos que, na segunda metade do século XVIII e começo do século XIX, prepararam as bases para a Independência política e cultural.

Embora as circunstâncias de ordem social sejam decisivas, elas só se configuram em produto significativo e atuante segundo a carne e a mente dos homens que vivem o processo social. É possível dizer que, nos decênios de 1920 e 1930, outros homens teriam desempenhado as tarefas requeridas pelo momento; mas seria ridículo pretender que outros homens tivessem feito tanto e tão bem. Com a passagem do tempo, há de se avaliar devidamente a importância da sua contribuição; mas desde já é possível compreender que eles deixaram no seu país um sulco definitivo — na política, na educação, na literatura, nas artes, no movimento geral das ideias e (é o que sobressai neste livro) no estabelecimento de instituições culturais.

Tais homens, muitos dos quais ainda em plena forma, definiram a sua contribuição histórica à volta de duas datas, que são os marcos do nascimento do Brasil contemporâneo, quando encaramos os problemas da cultura em conexão com o conjunto da vida social: 1922 e 1930. A primeira simboliza fatos anteriores e posteriores, como o início das reformas educacionais, a fundação dos partidos revolucionários, os movimentos político-militares que abalaram a velha estrutura da sociedade, a superação da estética tradicional. A segunda abre a fase em que tudo isto, deixando o terreno do projeto, do movimento restrito, da tentativa isolada, se alastra pelo país e transforma em estado de espírito coletivo o que era pensamento de poucos; em realidade atuante o que era plano ideal; em gosto habitual o que parecia aberração de alguns.

Para caracterizar esta segunda fase no terreno literário, tenho falado numa “rotinização do Modernismo”, mais ou menos inspirado no sentido em que Max Weber falava de “rotinização do carisma”. É decisivo para o historiador da literatura e da cultura, bem como para o sociólogo, esse momento onde o excepcional se torna usual, tendendo o que era restrito a se ampliar. O decênio de 1930 viu, com efeito, o alargamento das práticas literárias e artísticas, transformando aos poucos em padrão de uma época o que era considerado manifestação de pequenos grupos vanguardeiros. Assim, a arquitetura “futurista” foi-se tornando o estilo moderno, cada vez mais difundido e aceito, até o momento em que qualquer arquiteto, mesmo conservador, traça o seu risco obedecendo aos cânones que pouco antes eram objeto do riso, escândalo e mesmo vilipêndio. Na literatura, o que parecia brincadeira foi sendo reconhecido como a norma dos tempos novos, até penetrar no jardim fechado e vigiado do ensino. Nós, que começamos o ginásio com a velha e aliás bem-feita antologia de Fausto Barreto e Carlos de Laet (praticamente encerrada, se bem me lembro, na altura de Bilac e Coelho Neto), vimos surgir, em 1933 ou 34, a de Estêvão Cruz, que transcrevia logo no começo um ensaio de Tristão de Ataíde sobre o Modernismo, ao lado de um trecho de Graça Aranha sobre o carnaval carioca e, logo em seguida, um episódio de Macunaíma. Nós líamos e relíamos, entre assustados e deslumbrados, depois de termos ficado tanto tempo às voltas com “A palavra”, de Latino Coelho, ou “A última corrida de touros em Salvaterra”, de Rebelo da Silva. Era a revolução entrando na rotina.

A amizade descrita neste livro, através de uma correspondência fascinante e do relato de uma luta ombro a ombro pela cultura, pode ser vista como documento desse processo de integração das conquistas artísticas, intelectuais e científicas ao próprio ritmo de vida do Brasil contemporâneo. Paulo Duarte nos dá não apenas o perfil do seu amigo, mas o pano de fundo da época e a história de uma instituição renovadora. Como o seu estilo é eminentemente “falado”, traduzindo a trepidação mencionada há pouco, é também a história das suas ideias e das suas lutas, mesmo quando está falando do amigo. Em grande parte porque as ideias e lutas do amigo se irmanaram às suas, nos momentos privilegiados em que ambos se identificaram na tensão de um grande projeto.

Visto do ângulo político, no sentido mais compreensivo do termo, este livro narra um dos aspectos importantes do processo histórico-cultural que estamos tentando sugerir. Não apenas a rotinização da cultura, mas a tentativa consciente de arrancá-la dos grupos privilegiados para transformá-la em fator de humanização da maioria, através de instituições planejadas. Visto assim, o livro se torna uma espécie de grande exposição democrática, pois tem no centro a história do Departamento de Cultura de São Paulo, a tentativa de Mário de Andrade e Paulo Duarte para fazer da arte e do saber um bem comum; para incorporar as conquistas do Modernismo à tradição que ele veio atualizar e fecundar; para extrair dos grandes ideais do decênio de 1920 as consequências no terreno da educação e da pesquisa. E até hoje, na cidade de São Paulo, a cultura assim concebida não encontrou manifestações semelhantes: o que existe é ruína ou desenvolvimento do que então se fez.

É interessante pensar no destino político e cultural desses dois homens, partidos de pontos tão diferentes e destinados a formar uma equipe tão homogênea. Em 1922, Paulo Duarte era literariamente conservador, embora culturalmente renovador. Seu mestre Amadeu Amaral foi um mestre parnasiano, e a marca da sua influência vem registrada pelo discípulo no belo estudo introdutório das Tradições populares. Outro homem que marcou o seu espírito, o humorista italiano Trilussa, era também um poeta do passado, na tradição satírica, métrica e linguística de Cesare Pascarella. No entanto, Amadeu foi quem primeiro em São Paulo focalizou de maneira moderna dois temas que seriam fundamentais para os renovadores modernistas: o da cultura popular e o da língua falada. E Trilussa era soberano noutra atitude que também foi central na ideologia modernista: o sarcasmo demolidor, que limpa o caminho. Assim, temos o jovem Paulo Duarte de 1922 alheio ao movimento literário de vanguarda, e mesmo pouco simpático aos próceres que atacavam Amadeu (a este respeito há um lindo caso no livro); mas trazendo incrustadas no espírito certas componentes que dali a pouco iriam convergir com as deles. Isto ocorreu exatamente quando o Modernismo, tendendo à “rotinização”, se alargou de patrulha escoteira em movimento amplo. Paradoxalmente, então, o jovem, se não antimodernista, certamente não modernista de 22, foi o inspirador das medidas que permitiram a atuação efetiva das ideias dos modernistas na escola da cultura coletiva. Não é por acaso que, tendo sido fraternal companheiro de Mário, ele foi depois um dos mais dedicados amigos e testamenteiro de Oswald.

A este respeito, é interessante notar que a conjugação intelectual de homens como Mário de Andrade e Paulo Duarte foi propiciada por circunstâncias em parte de natureza política. Seria longo analisar o processo, mas podemos ao menos referir que o Partido Democrático criou algumas condições favoráveis para tal encontro e suas consequências — através de órgãos como o Diário Nacional e uma certa camaradagem oposicionista entre tantos moços.

Em conversa recente (no confinamento onde purga a culpa de ser um grande intelectual), Caio Prado Júnior me dizia que o Partido Democrático foi ao mesmo tempo mais reacionário e mais avançado que o velho Partido Republicano Paulista, que mandava no Estado e movia a máquina político-administrativa. Pois havia nele tanto os oligarcas mais coerentes e empedernidos, mais aferrados aos elementos conservadores da vida econômica e social, quanto elementos radicais, como a ala de Marrey Júnior, precursora do populismo.

Esta reflexão do ilustre historiador ajuda a entender o fato que agora nos interessa: a formação, dentro ou na periferia do Partido Democrático, de uma espécie de esquerda moderada, que se manifestou sobretudo como arrojada vanguarda cultural. Enquanto no campo propriamente político seguiam apenas mais ou menos, ou de todo não seguiam, as normas do Partido Democrático e suas encarnações posteriores, no campo cultural manifestavam atitudes mais avançadas, que depois, quando a gente do Partido chegou ao poder sob outros rótulos, resultariam na política de democratização a que me referi acima. É o caso dos dois protagonistas deste livro, o de Sérgio Milliet e alguns outros, não faltando gente de outros partidos, identificada fraternalmente ao grupo nos esforços de vanguarda cultural, como foi Rubens Borba de Moraes.

Foram elementos ligados de um modo ou de outro ao Partido Democrático, ou aos seus próceres, que tiveram iniciativas como a fundação da Universidade, a criação da Faculdade de Filosofia, o contrato das missões estrangeiras de professores, a criação do Departamento Municipal de Cultura, que deveria transformar-se em Estadual através de um Instituto, como conta Paulo Duarte. Segundo Lévi-Strauss, em Tristes tropiques, a oligarquia estava criando uma cultura ornamental para reforçar o seu brilho e formar quadros ajustados aos seus propósitos. Mas (diz Lévi-Strauss) o que fez foi promover o recrutamento de jovens das camadas médias, que mais tarde iriam desenvolver, para sua decepção magoada, não a justificação, mas a crítica dos fundamentos do seu poder.

(Abramos parênteses para assinalar que existe entre o antropólogo francês e Paulo Duarte uma correspondência que seria interessante publicar.)

Neste quadro (dizemos agora nós), o grupo que se poderia chamar a esquerda moderada dos intelectuais mais ou menos ligados ao Partido Democrático sentiu melhor a situação; e não apenas, em alguns casos, evoluiu politicamente para posições mais radicais, como, em seu terreno específico, o da cultura, não visou a elite, mas a maioria. Foi este, a meu ver, o timbre da iniciativa de Paulo Duarte, o Departamento de Cultura, junto com Mário de Andrade, Sérgio Milliet e outros. Curioso, este caso de uma vanguarda político-cultural à sombra de uma situação oligárquica, que a aceitou e apoiou.

Por isto, de certo modo o fulcro do presente livro é a história do Departamento de Cultura, feito para pesquisar, divulgar e ampliar ao máximo a fruição dos bens culturais — desde o requinte dos quartetos de corda até o incentivo às manifestações folclóricas, desde a pesquisa sociológica e etnográfica até à recreação infantil pedagogicamente orientada. Esse grande projeto foi cortado pelo meio com o advento da ditadura do Estado Novo, em 1937. Nós conhecíamos mais ou menos os resultados da atuação externa de Mário de Andrade nessa empresa. 

Agora, temos a narrativa e os documentos do seu drama pessoal, inseridos no dia a dia daquele tempo, de maneira a formarem um capítulo inestimável, não apenas de sua biografia, mas da história cultural do país. E tudo isto ligado a uma calorosa evocação de amizade, à vida fraterna dos pequenos grupos de intelectuais e artistas onde germinam grandes ideias, ao mecanismo desanimador da burocracia que devora os homens e as boas intenções. É portanto um livro rico, nutrido de dados, onde haveria muito que comentar. Quis abordar apenas um aspecto, porque o leitor poderá, com mais proveito, abordar ele próprio o manancial que se abre agora à sua frente.

 

Antonio Candido foi um sociólogo, crítico literário e professor universitário brasileiro. 


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