Sacalina, 2017
Diário da viagem de Mariano Marovatto pela ilha russa consagrada em livro de Tchékhov
No aeroporto
Durante o verão do centenário da Revolução, atravessamos a Rússia pela famosa e quase infinita bitola dos trens que percorrem a Transiberiana. Geralmente considera-se como o início do percurso de tão onírica viagem as cidades de Moscou ou São Petersburgo. Nós, eu e Anastasia Lukovnikova, companheira de aventuras, decidimos começar o périplo na pequena cidade de Viborg, na beira do Mar Báltico, já bem próxima da Finlândia. De lá, paramos em oito cidades diferentes: São Petersburgo, Moscou, Kazan, Ecaterimburgo, Krasnoiarsk, Irkutsk, Ulan-Ude, até finalmente dar com os pés no tão aguardado Oceano Pacífico russo, em Vladivostok. No total, atravessamos de trem o que corresponderia, em medidas sul-americanas, a um percurso que começaria na Terra do Fogo e terminaria, em linha reta, em Paramaribo, capital do Suriname, já no Caribe. Há muita coisa a ser dita sobre esses mais de 10 mil quilômetros percorridos, mas por hora, deixo aqui minhas ligeiras impressões dos últimos dias da nossa viagem.
Depois do descanso do chacoalhar dos trens em Vladivostok, tomamos então um avião para a Ilha da Sacalina, nosso destino final, e local onde nada especificamente mágico veio a acontecer. “Mas por que Sacalina?”, era a pergunta que os amigos faziam a Tchékhov quando ele, por razões muito menos frugais do que as minhas, resolveu, aos 30 anos, atravessar por conta própria o vasto Império Russo, ainda desprovido da facilidade da Transiberiana, e desbravar esta ilha de quase 77 mil quilômetros quadrados. Na reduzida versão da minha excursão, não passei três meses na ilha, como o autor de A gaivota, mas três dias e somente na capital, Iújno Sakhalinsk, 167 anos depois de Anton Tchékhov. Pela lógica, sabíamos todos que nossos cronogramas de itinerário e existência não bateriam, mas tenho comigo que fui lá também para poder encontrá-lo.
Aterramos de manhã bem cedo no minúsculo aeroporto da capital da ilha. O dia era azul, bastante quente, e no horizonte atrás da pista de aterrissagem via-se os morros de um verde luminoso, diferente daquele verde fosco a colorir a gigantesca floresta de pinheiros por onde atravessa a Transiberiana. Quem nos esperava no estacionamento era Anna, nossa derradeira anfitriã dessa jornada russa. Entramos com nossa pequena bagagem de mão na sua picape japonesa fabricada nos anos 2000, com volante à mão inglesa, tomada de terra e de tralha. Nem o teto nem as portas possuíam qualquer revestimento. Passei algum tempo observando como funcionam os mecanismos dos pinos das portas e do vidro não elétrico. O carro era uma carcaça pronta para aventura. Anna, com um sorriso largo, estava bastante animada em receber as visitas que vieram de tão longe. Em cinco minutos chegamos em casa. Nossa anfitriã morava com o marido e dois filhos num bairro residencial, muito próximo ao aeroporto, espécie de subúrbio à moda norte-americana, porém construído e habitado por sacalinenses. As diferenças são bastante perceptíveis: não há cercas nos quintais, mas muros altos feitos com placas de alumínio, não há calçada para pedestres, o asfalto se desfolha em camadas, como nos antigos condomínios de casas em Nova Friburgo, e o mato, como quase em todo o território urbano russo, cresce indefinidamente nas sarjetas e dentro dos jardins das casas, chegando ao tamanho de arbustos. Não diria que é um mau paisagismo, mas que simplesmente o paisagismo ali parece não interessar a ninguém. Existe sim uma necessidade em deixar o verde crescer antes que a neve cubra tudo novamente em dois meses. Pusemos nossos trajes de banho, preparamos uma mochila, chamamos as crianças entramos de volta no nosso bólido-carcaça de aventuras e pegamos a estrada para a praia.
Na praia
No caminho, Anna sugeriu parar no mercado de peixe, próximo às lagoas salgadas pelo Mar de Okhotsk. “O nosso piquenique clássico de praia é levar o caranguejo daqui”, disse ela. Lembrei-me das patinhas de siri que comia quando criança à beira mar em Alagoas e me animei. A própria Ilha da Sacalina tem o formato de uma pata de caranguejo, e no dedo maior dessa pata de caranguejo, tem uma outra pata. A Sacalina é uma garra dentro de uma garra boquiaberta prestes a mastigar o Japão. Iújno Sakhalinsk fica no exato vértice da garra menor. Quando chegamos à barraca demos de cara com caranguejos gigante de quase um metro de envergadura, empilhados, fervidos e naturalmente salgados. Levamos o que estava no topo da pilha e agora no caminho para a praia éramos praticamente seis no carro.
A praia era de uma areia amarela quase carioca. As ondas antes de se pronunciarem, morriam fazendo um barulho de borbulhas, não de ondas. Uma medusa roxa do tamanho de um prato, surge morta na água rasa. As crianças resolvem criar um campeonato de arremesso de pedras ao mar. As pedras lisas como setas, quicavam cinco, seis, sete vezes. Comemos todas as pernas do caranguejo gigante. As moscas que brotaram silenciosamente da areia se resolveram com o que restou de carne grudada na estrutura do bicho. (No mercado municipal em Iújno, compramos ovas de salmão – as famosas icras – a preço de banana. Há também bananas na Sacalina, vindas do Equador, mas a preço de ovas de salmão. A experiência gastronômica sacalinense parecia promissora, mas não foi o caso.).
No restaurante japonês
Lá pelas tantas, no seu livro, Tchékhov escreve: “Sacalina não tem clima... só tem mau tempo”. Eu estava achando uma afirmação pessimista até então. Talvez fosse por conta do fim de agosto, do fim da viagem e do sol que nos acompanhou ao longo do trajeto da Transiberiana, mas de noite a temperatura caiu drasticamente em uma hora, de 25 para 8 graus. Nos enfiamos no primeiro restaurante que vimos, a espera de uma carona para casa que demoraria ainda mais uma hora para acontecer. O restaurante era japonês e pensei que por conta do caranguejo e das ovas, e também pela proximidade do Japão (a ilha de Hokaido é visível do alto dos morros virados para o sul), não haveria erro em pedir qualquer sushi. Pensei errado. Os sacalinenses, como todo russo, orgulham-se mais da neve do que do mar que circunda a ilha. O que sobrou da presença japonesa que tomou metade da Sacalina durante a Segunda Guerra é o casarão que hospeda o Museu da Cidade. O outro único traço em comum entre japoneses e sacalinenses diz respeito à caça ao povo Ainu, autóctone das ilhas do norte do extremo oriente. Há séculos que os russos isolaram e quase os dizimaram, tanto na Sacalina, quanto nas Curilas, território até hoje em disputa entre os dois países. Logo o sushi estava tão triste quanto o de qualquer bufê à quilo do Centro do Rio de Janeiro.
No teleférico
Anton, xará de Tchékhov, marido de Anna, trabalha no gigantesco teleférico da cidade chamado “ar da montanha”. Era uma segunda-feira e a atração turística estava fechada ao público, mas Anton fez questão de nos levar algumas centenas de metros acima, num passeio exclusivo, ventoso e vazio pelos morros de Iújno. No ponto final e mais alto do teleférico, avista-se numa área do morro à frente, um campo desbastado, com inúmeros pinheiros caídos, violentamente arrancados do chão. Pergunto a Anton o que aconteceu. “Um pequeno furacão no mês passado andou por ali. Ainda não conseguimos limpar totalmente aquela área." Nosso guia então aponta com o dedo indicador todo o exato percurso por onde passou o “pequeno furacão”. Meus olhos destreinados para a floresta alheia, começam a perceber como é o desenho das pegadas de um furacão.
Nas horas vagas Anton, nascido e criado em Moscou, pratica motocross. É um famoso motociclista local, desbravador de trilhas inéditas. “Já fui correr até no Japão”, diz ele. O vento frio sopra forte e entra pelos nossos inocentes casaquinhos de verão. Talvez seja hora de descer. Pergunto para Anton por que razão ele escolheu a Sacalina para viver. “Há outro lugar no mundo tão bom quanto esse?” Preferi não responder.
Na saída do “Ar da montanha” há dois monumentos: um tanque T-34 (usado na Segunda Guerra Mundial, na Guerra da Coreia e, pela última vez, na guerra civil angolana), empinado num gigantesco pedestal, à frente do novíssimo Museu do Exército; logo ao lado ergue-se a Catedral da Natividade, branca, azul e dourada, inacreditavelmente recém-construída. Penso que a extrema direita brasileira iria amar esta praça se não fossem as Avenidas Lênin, Karl Marx e Comunista a cortarem a sua principal rua.
Na Avenida Comunista
É na Avenida Comunista onde ocorre o principal festival de cinema da ilha. Temos ingressos para assistir Monanieba, ou como quer o título em português: Arrependimento sem perdão. O filme soviético foi produzido em 1984 na Geórgia, mas logo censurado por fazer clara alusão à ditadura stalinista. Foi somente em 1987, com a perestroika de Mikhail Gorbachev que os russos puderam assistir à película dirigida por Tengiz Abuladze nos cinemas do país. Geórgia, país onde nasceu Maiakovski e Stalin, milhares de quilômetros dali, é parte incontornável da mesmíssima cultura russa-soviética de Iújno Sakhalinsk. Pedantíssimo, me lembrei do “Poema Acreano” do Mário de Andrade que diz:
Não vê que me lembrei que lá no norte, meu Deus! muito longe de mim,
Na escuridão ativa da noite que caiu,
Um homem pálido, magro de cabelo escorrendo nos olhos
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.
Esse homem é brasileiro que nem eu...
Falei das dimensões continentais de nossos dois países, de como aquilo era impressionante e etc. mas ninguém se compadeceu muito. Momentos depois, parei para pensar que fui até a Sacalina, mas que ainda não tinha posto os pés no Acre.
No museu sobre o livro de Tchékhov
A praça do museu sobre o livro A ILHA DE SACALINA é comprida e estende-se até a Avenida Comunista. Estátuas de personagens dos contos de Tchékhov evocam no seu figurino o cosmopolitismo da era dos czares um passado bastante deslocado. É como aquela estátua de Gandhi em frente à Cinelândia carioca, ou ainda, o Confúcio à beira-mar em Montevidéu. Uma coisa muito bonita, mas estrangeira.
Numa tarde, Anton, o motociclista, deixou o filho mais velho sob nossos cuidados e fomos com ele finalmente ao encontro de Tchékhov. À porta está o nome completo da instituição: “Museu de Arte e Literatura da Ilha de Sacalina – o livro de A. P. Tchékhov”, criado pelo Ministério da Cultura da Região da Sacalina. Bastante menor, mais vazio e mais melancólico do que o Museu da Cidade, porém mais novo e em excelente estado, vê-se em destaque no “museu do livro”:
- A primeira edição, impressa em 1895, em Moscou, aberta na folha de rosto, devidamente guardada numa caixa de vidro;
- Uma maquete detalhada da prisão de Alexandrovski;
- Manequins masculinos com o figurino dos colonos degredados, jogando cartas e bebendo uma bebida escura, com barbas farfalhudas e rostos resignados;
- Um bilhete, até então secreto, escrito por um dos generais do Czar dando ordens para que Tchékhov fosse devidamente vigiado durante sua estadia na ilha;
- Utensílios e vestimentas da época, não se sabe se usados em Alexandrovski ou não;
- Fotos dos presos;
- A lista feita à mão por Tchékhov de toda a bibliografia que leu antes de sua partida para a Sacalina;
- Rascunhos dos seus manuscritos que mais tarde se tornariam o livro;
- Uma vitrine com dezenas de edições do mundo inteiro d' A ILHA DE SACALINA;
A ausência de Tchékhov era presente numa cenográfica mesa de trabalho, na qual os óculos lá pousados não eram os dele. Do lado de fora do museu, finalmente o rosto do escritor, esculpido num busto onde se lê abaixo sua assinatura sinuosa em dourado. Na época em que Tchékhov esteve na Sacalina, Iújno (que é uma corruptela de algo como, “ao sul”) chamava-se Vladímirovka, um povoado recém-fundado que contava com a pífia população de 91 habitantes. “Das 27 famílias, só seis são de casais legítimos”, está escrito no livro. O escritor permaneceu pouquíssimos dias em Vladímirovka. Anotou curiosidades engraçadas (que podem ser lidas a partir da página 215 da edição da Todavia) e foi logo embora desbravar o restante do sul da Sacalina. Um pouco desapontado diante da pouca monumentalidade, bem menor do que havia imaginado sobre a presença de Tchékhov em Iújno, me resignei e me contentei com o fato de que, na semana anterior, quando estávamos em Ulan-Ude, fronteira com a Mongólia, qual não foi minha surpresa quando deparei-me com uma estátua do escritor, sentado num banco, numa rua de pedestres. Na ocasião, resolvi feito criança subir no colo da estátua, na expectativa de ouvir qualquer história que ele pudesse me contar ali, no meio da Sibéria. A estátua permaneceu em silêncio, mas escutei atentamente a tudo.
Despedimos do museu sobre o livro de Tchékhov e no dia seguinte voltamos ao aeroporto. Fizemos o retorno da nossa odisseia pelo ar, em apenas oito horas, até Moscou. No voo passava o clássico do cinema soviético dos anos 1960, Я шагаю по Москве, ou numa tradução confortável para o português, Caminhando por Moscou. No tema principal do filme, o jovem protagonista canta, na cena final, os seguintes versos:
E lá vou eu passear por Moscou
e na minha cabeça também caminhei
pelo salgado Oceano Pacífico,
pela tundra e pela taiga.
Vou-me embora num veleiro branco,
não me importa mais com quem.
E se no inverno sofrer de saudades, eu encontrarei
debaixo da neve uma violeta
e me lembrarei de Moscou.
E sobem os créditos.
Mariano Marovatto é poeta e músico, com doutorado em literatura brasileira pela PUC-Rio. Saiba mais sobre seu trabalho aqui.