O narrador sensível, por Olga Tokarczuk
Leia o discurso de Olga Tokarczuk do Prêmio Nobel de Literatura na íntegra.
* trecho do livro Escrever é muito perigoso: Ensaios e conferências, de Olga Tokarczuk.
1.
A primeira fotografia da qual eu tenho conhecimento é uma imagem de minha mãe ainda antes de eu nascer. Infelizmente, a imagem é em preto e branco e muitos pormenores se perdem, convertendo-se em formas acinzentadas. A luz é suave e úmida, acho que de primavera, e deve se filtrar pela janela, de modo que o quarto mantém um brilho mal percebido. Minha mãe está sentada junto a um rádio antigo, daqueles que tinham um olho verde e dois botões: um para ajustar o volume, outro para encontrar a estação. Esse rádio passou a ser depois o meu companheiro de infância e foi a partir dele que eu tive notícia da existência do universo. O movimento giratório do botão alterava o aparato sensorial das antenas que captavam diversas emissoras: Varsóvia, Londres, Luxemburgo ou Paris. Às vezes, porém, o som se extinguia, como se, entre Praga e Nova York, Moscou e Madri, as antenas encontrassem buracos negros inesperados. Naqueles momentos eu ficava arrepiada. Acreditava que através daquele rádio outros sistemas solares e galáxias falavam para mim, mandando mensagens no meio de estalos e ruídos, e eu não sabia decodificá-las.
Examinando aquela foto como uma menina, ficava convencida de que minha mãe me procurava girando o botão do rádio. Como um radar sensível, ela penetrava os espaços infinitos do universo, tentando saber quando e de onde eu viria. O seu penteado e a roupa (um decote profundo) indicam quando a foto foi tirada — foi no início dos anos 1960. Uma mulher um pouco curvada olha para além do quadro e vê algo que está fora do alcance de quem examina a imagem. Quando eu era criança, achava que ela olhava para o tempo. Nessa foto nada acontece, é registro de um estado, não de um processo. A mulher está triste, pensativa, meio ausente.
Mais tarde, quando perguntava a minha mãe sobre aquela tristeza — e fiz isso várias vezes para ouvir sempre o mesmo —, ela respondia que estava triste porque eu ainda não havia nascido, mas ela já tinha saudades de mim.
— Como você podia ter saudades de mim, se eu ainda não existia? — eu perguntava.
Eu já sabia que se podia ter saudades de alguém que se perdeu, que a saudade era efeito da perda.
— Mas também pode ser o contrário — respondia ela. — Se você tem saudade de alguém, essa pessoa já existe.
Essa breve conversa, que ocorreu em uma província do oeste da Polônia no final dos anos 1960, uma conversa entre minha mãe e mim, sua filha pequena, ficou gravada para sempre na minha memória e constituiu uma reserva de força para a vida inteira. Ela projetou minha existência para além da materialidade comum do mundo e da casualidade, além da causa e efeito e das leis da probabilidade. Ela a colocou, de certa forma, fora do tempo, em uma doce proximidade do eterno. Entendi, com minha mente infantil, que eu era mais do que tinha imaginado. E mesmo que eu dissesse: “estou ausente”, em primeiro lugar se encontra “estou” — a palavra mais importante e mais estranha do mundo.
Desse modo, uma jovem não religiosa, minha mãe, me deu algo que antigamente se chamava alma, dotando-me, assim, da narrativa mais sensível do mundo.
2.
O mundo é um tecido que urdimos a cada dia com enormes teares de informações, discussões, filmes, livros, fofocas, histórias. Hoje, o alcance desses teares é gigantesco. Através da internet, quase todos podem participar desse processo, de forma responsável e irresponsável, com amor e com ódio, para o bem e para o mal, para a vida e para a morte. Quando a narrativa muda, o mundo muda também. Nesse sentido, o mundo é feito de palavras.
A maneira como pensamos o mundo e — o que parece mais significativo — como o narramos tem, portanto, enorme importância. Algo que acontece, mas não é contado, deixa de existir e morre. Quem sabe muito bem disso são não apenas historiadores, mas também (ou sobretudo) todos os tipos de políticos e tiranos. Quem tiver uma história e souber narrá-la, estará no poder.
Hoje, parece que o problema consiste no fato de que ainda não temos narrativas prontas, não só no que diz respeito ao futuro, mas também no que concerne ao “agora” concreto, às mudanças velozes do mundo atual. Falta-nos linguagem, faltam pontos de vista, metáforas, mitos e novas fábulas. Somos testemunhas, porém, de como as narrativas antigas, inadequadas, enferrujadas e anacrônicas são introduzidas à força em uma visão do futuro, talvez partindo do princípio de que algo antigo é melhor do que um nada novo, ou procurando dessa forma lidar com a limitação dos seus próprios horizontes. Em poucas palavras: faltam-nos novas maneiras de narrar o mundo.
Vivemos em uma realidade multivocal de narrativas em primeira pessoa e estamos expostos a ruídos polifônicos vindo de todos os lados. Quando falo dos relatos “em primeira pessoa”, refiro-me a um tipo de narração que circunda o “eu” do criador que escreve, de forma mais ou menos direta, sobre si e através de si mesmo. Determinamos que essa espécie de ponto de vista individualizado, uma voz a partir do “eu”, era o mais natural, humano, honesto, mesmo que abrisse mão de uma perspectiva mais ampla. Nesse sentido, contar algo em primeira pessoa significa tecer um padrão absolutamente irrepetível e único, ter como indivíduo uma sensação de autonomia, estar consciente de si e da sua sorte. Mas isso significa também estabelecer uma oposição entre o “eu” e o mundo, que, às vezes, leva à alienação.
Penso que a narração conduzida em primeira pessoa é muito característica da visão contemporânea em que o indivíduo funciona como um centro subjetivo do mundo. A civilização ocidental é construída e sustentada, em grande parte, com base na descoberta do “eu”, que constitui uma das medidas mais importantes da realidade. Aqui, o ser humano é o ator principal e o seu julgamento, ainda que não seja único, é tratado sempre com atenção e seriedade. A narrativa em primeira pessoa parece uma das maiores descobertas da civilização humana, sendo lida com veneração e confiança. Esse tipo de relato, em que vemos o mundo pelos olhos de um “eu” e ouvimos tudo em seu nome, estabelece, mais do que qualquer outro, um vínculo com o narrador e obriga a adotar sua posição única.
Não se pode desdenhar o que a narração em primeira pessoa fez para a literatura e para a humanidade em geral. Ela transformou o relato sobre o mundo, enquanto espaço de ação de heróis e divindades que estão fora da nossa influência, na nossa história individual, cedendo o palco a pessoas iguais a nós. Ademais, dado que é fácil identificar-se com alguém igual a nós, entre o narrador e o leitor ou ouvinte nasce um entendimento emocional baseado na empatia. Esta, por sua vez, naturalmente aproxima e apaga fronteiras. Em um romance, é muito fácil anular os limites entre o “eu” do narrador e o “eu” do leitor. Uma narrativa “cativante” pretende mesmo que essa fronteira seja suprimida e anulada, de modo que o leitor, graças à empatia, se torne por um tempo o narrador. A literatura se transformou, portanto, em um campo de troca de experiências, uma ágora, onde cada pessoa pode contar a história da sua vida ou dar voz a um alter ego. É um espaço democrático porque cada um pode se exprimir, cada um pode também criar “uma voz que fala”. Acho que nunca na história humana tantas pessoas se ocuparam da escrita e da narração. Basta olhar para qualquer estatística.
Quando visito feiras do livro, vejo quantas obras publicadas tratam precisamente disso: o “eu” autoral. O instinto da expressão — que talvez seja tão forte quanto outros instintos que determinam nossa vida — se manifesta de modo mais completo na arte. Queremos ser reconhecidos, queremos nos sentir especiais. As narrações do tipo “vou contar a minha história para você”, “vou contar para você a história da minha família”, ou “vou contar para você onde estive” são hoje os gêneros literários mais populares. É um fenômeno em grande escala, também porque hoje quase todo mundo sabe escrever e muitos adquirem a capacidade, antes reservada a poucos, de expressar-se com palavra e narração. Paradoxalmente, porém, tudo isso parece um coro composto só de solistas: as vozes se sobrepõem, lutam pela atenção, percorrem os mesmos caminhos, acabando por abafar umas às outras. Sabemos tudo sobre eles, somos capazes de nos identificar com eles e viver sua vida como se fosse a nossa. Apesar disso, é com uma frequência surpreendente que a experiência de leitura se revela incompleta ou decepcionante porque descobrimos que a expressão do “eu” autoral não é garantia da universalidade. O que parece nos faltar é uma dimensão parabólica do relato. O protagonista de uma parábola é, de fato, ele mesmo, um indivíduo que vive em determinadas circunstâncias históricas ou geográficas, mas ao mesmo tempo ultrapassa o concreto, tornando-se Todo Homem e De Toda Parte. Acompanhando um personagem cuja história é contada em um romance, o leitor pode se identificar com as peripécias e considerar a situação como se fosse dele mesmo, enquanto em uma parábola ele tem que abandonar completamente a sua individualidade, transformando-se naquele Todo Homem. Nesse artifício, exigente do ponto de vista psicológico, a parábola, ao encontrar um denominador comum para vários destinos individuais, universaliza nossa experiência. A sua presença insuficiente é uma prova da impotência.
Talvez, para não nos afogarmos em uma infinidade de títulos e nomes, tenhamos começado a dividir o enorme leviatã literário em gêneros que tratamos como disciplinas esportivas, enxergando escritores e escritoras como atletas especializados.
A comercialização geral do mercado literário resultou em uma divisão por ramos: agora se organizam feiras e festivais do livro deste ou daquele tipo, completamente separados, criando uma clientela composta de leitores que se fecham no romance policial, fantasia ou ficção científica. Uma particularidade dessa situação é que aquilo que não passaria de uma ajuda aos livreiros e bibliotecários na ordenação da multidão de livros publicados e aos leitores na orientação do tamanho da oferta se transformou em um conjunto de categorias abstratas, nas quais já não se encaixam apenas obras existentes, mas conforme as quais os próprios autores começam a escrever. É cada vez mais frequente que um gênero funcione como uma fôrma para bolo que produz resultados muito parecidos, cuja previsibilidade é considerada uma virtude e cuja banalidade é percebida como uma conquista. O leitor sabe o que deve esperar e recebe precisamente aquilo que queria.
Intuitivamente, sempre me coloquei contra ordens desse tipo, já que elas levam à limitação da liberdade do escritor e à relutância à experimentação e à transgressão, que são características essenciais para a criação em geral. E essas ordens excluem por completo do processo criativo qualquer excentricidade, sem a qual não existe arte. Um bom livro não precisa declarar sua filiação de gênero. A divisão em gêneros é resultado da comercialização de toda a literatura e efeito do tratamento dela como produto vendável, junto com toda a filosofia de marca, público-alvo e outras invenções do capitalismo contemporâneo.
Hoje, podemos ter a enorme satisfação de testemunhar a emergência de uma nova maneira de narrar o mundo. Falo das séries de televisão, cujo objetivo tácito é nos levar a um transe epistemológico. É claro que esse modo narrativo existia já nos mitos e nos relatos homéricos, sendo Hércules, Aquiles ou Ulisses os nossos primeiros protagonistas de séries. Todavia, ele nunca antes conquistou tanto espaço nem exerceu uma influência tão significativa no imaginário coletivo. As primeiras décadas do século XXI pertencem, com certeza, às séries. O seu impacto sobre as maneiras de narrar (e por isso também de entender) o mundo é revolucionário.
Na sua forma atual, a série não apenas estendeu a participação da narração no tempo, gerando novas cadências, ramificações e aspectos dele, mas também introduziu nele novas ordens. Uma vez que o seu objetivo é, em muitos casos, manter a atenção do espectador pelo maior tempo possível, a narração de uma série multiplica tramas, entrelaçando-as de formas tão improváveis que, diante da sua própria impotência, recorre até a um velho artifício narrativo, ridicularizado antigamente pela ópera clássica: deus ex machina. Inventando episódios, muitas vezes se altera a psicologia inteira do personagem ad hoc para que ela corresponda melhor aos acontecimentos que vão surgindo. Alguém que no início é gentil e reservado acaba por se tornar vingativo e violento, um personagem secundário passa a ocupar o primeiro plano, e um protagonista a quem ficamos afeiçoados perde importância ou até desaparece, causando grande consternação.
A possível continuação na próxima temporada implica a necessidade de finais abertos em que não há como aparecer e se exprimir plenamente aquela misteriosa catarse, experiência de uma alteração interior, realização individual, satisfação com a participação no ato de narrar. Esse tipo de complicação e inacabamento, um constante adiamento da recompensa representada pela catarse, vicia e hipnotiza. Fabula interrupta, inventada há muito tempo e conhecida dos relatos de Sherazade, voltou em grande estilo nas séries, mudando nossa sensibilidade e produzindo efeitos psicológicos mais estranhos ao nos afastar da nossa vida e nos hipnotizar como droga. Ao mesmo tempo, a série se inscreve no novo ritmo do mundo, prolixo e desordenado, na sua comunicação caótica, sua instabilidade e fluidez. É um formato narrativo que, hoje, parece procurar uma nova fórmula de maneira mais criativa. Nesse sentido, é nas séries que se realiza um trabalho sério sobre as narrativas do futuro, a adequação do relato a uma nova realidade.
Vivemos, porém, sobretudo em um mundo marcado por um excesso de informações contraditórias, mutuamente exclusivas, que lutam entre si com garras e dentes.
Nossos antepassados acreditavam que o acesso à informação traria às pessoas não apenas felicidade, prosperidade, saúde e riqueza, mas também criaria uma sociedade igualitária e justa. Segundo eles, o que faltava ao mundo era uma sabedoria universal decorrente do conhecimento.
Jan Ámos Komenský, um grande pedagogo do século XVII, cunhou o termo “pansofia”, que abrangia ideias sobre uma potencial onisciência, conhecimento universal em que cabia toda a cognição possível. Ao mesmo tempo, e sobretudo, era o sonho de um conhecimento disponível a todos. O acesso à informação sobre o mundo não transformaria um camponês iletrado em um indivíduo reflexivo, consciente de si mesmo e do mundo? O conhecimento ao alcance da mão não faria os homens se tornarem prudentes e conduzirem sua vida com sabedoria?
Quando surgiu a internet, parecia que aquelas ideias poderiam se concretizar por completo. A Wikipédia, que eu admiro e apoio, poderia parecer para Komenský e outros pensadores da mesma vertente como a realização de um sonhos para a humanidade: aqui criamos e recebemos um enorme depósito de conhecimento, constantemente aumentado, atualizado e disponibilizado democraticamente em qualquer lugar no mundo.
Os sonhos realizados muitas vezes nos decepcionam. Acontece que não somos capazes de arcar com essa magnitude da informação que em vez de unir, generalizar e libertar acaba por diferenciar, dividir, fechar em bolhas, criar várias narrativas contraditórias ou até mutuamente hostis, antagonistas.
Ademais, a internet se sujeitou de modo completamente irrefletido aos processos de mercantilização, e entregue aos jogadores-monopolistas, controla uma quantidade gigantesca de dados que são empregados de forma nada “pansófica” — ou seja, em prol do acesso amplo ao conhecimento —, mas, pelo contrário, servem sobretudo para programar comportamentos dos usuários, como soubemos depois do escândalo da Cambridge Analytica. Em vez de ouvirmos a harmonia do mundo, ouvimos uma cacofonia, um barulho insuportável em que tentamos desesperadamente escutar uma melodia, por mais silenciosa que seja, um ritmo, mesmo que baixinho. A paráfrase de um trecho shakespeariano combina, como nunca antes, com essa realidade cacofônica: a internet é cada vez mais uma história contada por um idiota, cheia de som e de fúria.
As pesquisas dos cientistas políticos também contestam as intuições de Jan Ámos Komenský, baseadas na convicção de que quanto mais conhecimento universalmente acessível no mundo, mais os políticos empregariam a razão e tomariam decisões sensatas. Tudo indica que isso não é tão simples. O conhecimento pode sobrepesar e sua complexidade e ambiguidade levam ao desenvolvimento de vários tipos de mecanismos de defesa, desde a negação e a repressão até a fuga para as regras fáceis de um pensamento simplificador, ideológico, partidário.
A categoria de fake news impõe novas perguntas sobre o que é ficção. Os leitores que se deixam enganar, desinformar ou iludir várias vezes vão adquirindo uma neurose idiossincrática. Uma reação a esse cansaço da ficção talvez seja o enorme sucesso da literatura de não ficção, que nesse grande caos da informação grita sobre nossas cabeças: “conto a verdade, só a verdade”, “o meu relato é baseado em fatos!”.
A ficção perdeu a confiança dos leitores desde que a mentira, mesmo que continuasse a ser uma ferramenta primitiva, se tornou uma arma perigosa de destruição em massa. É com demasiada frequência que me deparo com uma pergunta cheia de desconfiança: “Isso que você escreveu é verdade?”. Sempre tenho a impressão de que é um prenúncio do fim da literatura.
Essa pergunta, inocente do ponto de vista do leitor, parece apocalíptica para os ouvidos do escritor. O que eu posso responder? Como explicar a condição ontológica de Hans Castorp, de Anna Kariênina ou do Ursinho Pooh?
Eu considero esse tipo de curiosidade dos leitores um retrocesso civilizatório. É uma deficiência da capacidade de participar, em vários níveis (concreto, histórico, mas também simbólico e mítico), da cadeia de acontecimentos chamada nossa vida. A vida é formada por eventos, mas só quando sabemos interpretá-los, tentamos entendê-los e lhes dar sentido eles se tornam experiência. Os acontecimentos são fatos, mas a experiência é algo inefavelmente diverso. É ela, e não o evento, que constitui a matéria da nossa vida. A experiência é um fato sujeito à interpretação e guardado na memória. Ela se refere também a uma base que temos na nossa mente, a uma estrutura profunda dos significados, em que conseguimos estender a nossa vida e examiná-la com cuidado. Acredito que o papel desta estrutura é desempenhado pelo mito. O mito, como se sabe, nunca aconteceu, mas acontece sempre. Hoje, já não só atua por meio das aventuras dos heróis antigos, mas também penetra nas narrativas onipresentes e popularíssimas do cinema, jogos e literatura contemporâneos. A vida dos habitantes do Olimpo se mudou para Dinastia, enquanto as proezas dos heróis são executadas por Lara Croft.
No meio dessa divisão calorosa entre a verdade e a ficção, o relato da nossa experiência, formado pela literatura, assume uma dimensão própria.
Nunca me entusiasmei particularmente com uma distinção simples entre ficção e não ficção, a não ser que as consideremos apenas declarativas e arbitrárias. No mar de várias definições da ficção, gosto mais daquela que é também a mais antiga e vem de Aristóteles: A ficção é sempre uma forma da verdade.
Estou convencida também da distinção entre história e enredo* feita pelo escritor e ensaísta Edward Morgan Forster. Ele defende que quando dizemos: “o marido morreu, e depois morreu a esposa” — é uma história. Porém, quando dizemos: “o marido morreu, e depois a esposa morreu de desgosto” — é um enredo. Toda ficcionalização consiste na transição da pergunta “e depois?” para uma tentativa de compreensão baseada na nossa experiência humana: “por que isso aconteceu?”.
A literatura começa com aquele “por quê?”, mesmo que tenhamos que responder a esta pergunta sempre com um simples: “não sei”.
Portanto, a literatura apresenta questões que não podem ser respondidas com a ajuda da Wikipédia, já que ultrapassa meros fatos e eventos, recorrendo imediatamente à nossa experiência.
É possível, porém, que o romance e a literatura em geral estejam se transformando, diante dos nossos olhos, em algo bastante marginal em relação a outros modos de narração. Que, devido a seu impacto, a imagem e as novas formas da transmissão imediata da experiência — filme, fotografia, realidade virtual e realidade aumentada — passem a constituir uma alternativa séria à leitura tradicional. A leitura é um processo psicológico de percepção bastante complexo. Simplificando: primeiro um conteúdo extremamente elusivo é conceitualizado e verbalizado, transformado em signos e símbolos, e depois “decodificado” de volta da linguagem para a experiência. Isso exige certa competência intelectual, mas sobretudo exige atenção e concentração, habilidades cada vez mais raras hoje, em um mundo caracterizado pela extrema distração.
A humanidade percorreu um longo caminho no que diz respeito à transmissão e à partilha da experiência individual, desde a oralidade, dependente da palavra viva e da memória humana, até a revolução de Gutenberg, quando a narrativa passou a ser mediada universalmente pela escrita, perpetuada, codificada e suscetível de reprodução sem alterações. A maior conquista dessa jornada foi o momento em que identificamos o próprio pensamento com a escrita, ou seja, um modo concreto de utilização de ideias, categorias ou símbolos. Hoje, claro, estamos perante uma revolução com implicações semelhantes, quando a experiência pode ser transmitida diretamente, sem a ajuda da palavra impressa.
Já não é preciso escrever um diário de viagem, quando através das mídias sociais se pode tirar e enviar fotografias para o mundo inteiro, imediatamente e para qualquer pessoa. Não é preciso escrever uma carta, quando mais fácil é ligar. Para que ler romances volumosos, quando se pode mergulhar em uma série? Em vez de sair de casa para se divertir com amigos, é melhor jogar videogame. Ler uma autobiografia? Não faz sentido, já que acompanho a vida das celebridades no Instagram e sei tudo sobre elas. Gravo aulas em vez de tomar notas.
O maior inimigo do texto já não é a imagem, como pensávamos no século XX, preocupados com o impacto do cinema e da televisão. É, na realidade, uma dimensão completamente diferente da experiência do mundo, que afeta diretamente os nossos sentidos.
3.
Não pretendo esboçar aqui nenhuma visão totalizante da crise do romance. Muitas vezes, porém, fico aflita ao sentir que no mundo há uma falta. Que sendo vivenciado pelas telas ou aplicativos, ele se torna meio irreal, distante, bidimensional, estranhamente indefinido, embora se possa alcançar qualquer informação com surpreendente facilidade. Hoje, o enfadonho “alguém”, “algo”, “algum lugar”, “algum tempo” pode ser mais perigoso do que ideias proferidas com certeza absoluta, muito concretas e definidas: a Terra é plana, as vacinas matam, o aquecimento global é uma bobagem, e a democracia em muitos países não está sob ameaça. Em “algum lugar” morrem afogadas “algumas” pessoas que tentam atravessar um mar. Em “algum lugar”, há “algum tempo”, ocorre “alguma” guerra. Devido à sobrecarga de informações, as mensagens individuais perdem seus contornos, desvanecem-se na nossa memória, tornam-se irreais e desaparecem.
O fluxo de imagens de violência, estupidez, crueldade e discurso de ódio é desesperadamente contrabalanceado por toda espécie de “boas notícias”, mas elas não são capazes de abafar uma sensação perturbadora que é difícil até de verbalizar: tem alguma coisa errada com o mundo. Esse sentimento, antigamente reservado apenas aos poetas neuróticos, hoje se torna uma epidemia da indefinibilidade, uma angústia que escorre de toda parte.
A literatura é um dos poucos domínios que tenta nos manter perto da concretude do mundo, porque ela é sempre “psicológica” por natureza. Ela se concentra, de fato, nas razões e nos motivos internos dos personagens, revela sua experiência de um modo que não seria acessível de outra forma, ou simplesmente induz o leitor a fazer uma interpretação psicológica do seu comportamento. Apenas a literatura é capaz de nos possibilitar entrar profundamente na vida de outro ser, entender suas razões, partilhar seus sentimentos, viver sua história. A narrativa sempre circunda o sentido. Mesmo que não declare isso de modo direto, mesmo que rejeite programaticamente qualquer busca de sentido, concentrando-se na forma ou no experimento, mesmo que faça uma reviravolta formal, procurando novos meios de expressão. Ao ler um romance, por mais behaviorista e despojado que seja seu estilo, não podemos nos abster de perguntar: “por que isso acontece?”, “o que isso significa?”, “qual é o sentido disso?”, “aonde isso leva?”. É até possível que a nossa mente tenha evoluído para o romance enquanto um processo da atribuição de sentido a milhões de estímulos que nos cercam, e mesmo durante o sono ela continua produzindo suas narrativas de modo constante e incansável. A narrativa é, portanto, um modo de ordenar no tempo uma quantidade infinita de informações, determinar suas relações com o passado, o presente e o futuro, descobrir sua recorrência e ordená-la em categorias de causa e efeito. Participam dessa tarefa tanto a razão quanto as emoções.
Não surpreende que uma das primeiras descobertas feita pelas narrativas tenha sido o destino, que apesar de se apresentar aos homens sempre como terrível e desumano, introduziu ordem e constância na realidade.
4.
Prezadas senhoras e senhores, a mulher da fotografia, minha mãe, que tinha saudades de mim, embora eu ainda não existisse, alguns anos mais tarde leu fábulas para mim.
Em uma delas, de autoria de Hans Christian Andersen, um bule de chá jogado no lixo se queixava de que fora tratado de modo cruel pelos homens — foi descartado quando sua asa se quebrou. Mas ele podia ainda lhes ser útil, não fossem tão perfeccionistas e exigentes. Outros artefatos estragados o acompanhavam, contando histórias verdadeiramente épicas de suas pequenas vidas de objeto.
Quando eu era criança, escutava aquela fábula com o rosto afogueado e lágrimas nos olhos, porque tinha profunda convicção de que os objetos tinham seus problemas, sentimentos e até uma vida social bastante comparável com a nossa, humana. Os pratos no armário podiam conversar entre si, os talheres na gaveta constituíam uma espécie de família. Da mesma forma, os animais eram seres misteriosos, sábios e dotados de consciência, com os quais mantivemos desde sempre um vínculo espiritual e uma grande semelhança. Mas os rios, as florestas, as estradas também tinham o seu ser — eram entes vivos que mapeavam nosso espaço e criavam a sensação de pertencimento, um misterioso Raumgeist. Era viva a paisagem que nos cercava, e o sol, e a lua, e todos os astros. Todo o mundo visível e invisível.
Quando comecei a duvidar disso? Procuro na minha vida um momento em que, como se fosse obra de um clique, tudo se alterou, ficou menos nuançado, mais simples. O burburinho do mundo se calou, sendo substituído pelo barulho da cidade, murmúrio dos computadores, trovão dos aviões que passam sobre a cabeça e pelo enfadonho ruído branco dos oceanos de informação.
A partir de certo momento na nossa vida, começamos a enxergar o mundo de forma fragmentada, tudo separado, em pedaços afastados uns dos outros como galáxias. A realidade em que vivemos nos assegura disso: os médicos nos tratam de acordo com sua especialização, os impostos não têm nada a ver com a remoção da neve na estrada que usamos para chegar ao trabalho, o almoço não se conecta às enormes explorações avícolas e pecuárias, e camisetas não têm nenhuma ligação com fábricas miseráveis em algum lugar na Ásia. Tudo é separado, vive isolado, sem nexo.
Para suportarmos tudo com mais facilidade, recebemos números, crachás, cartões, identidades toscas, feitas de plástico, que procuram nos reduzir a usuários de uma partícula isolada de um todo que já deixamos de enxergar.
O mundo morre e nós já nem sequer reparamos nisso. Não vemos que ele vai se tornando um conjunto de objetos e eventos, um espaço morto onde circulamos sozinhos e perdidos, à mercê de decisões alheias, escravizados por um fado inescrutável, por uma sensação de sermos um brinquedo das grandes forças da história ou do acaso. Nossa espiritualidade desaparece ou se torna superficial e ritualística. Ou apenas passamos a crer nas forças simples, físicas, sociais e econômicas, que determinam o nosso movimento como se fôssemos zumbis. E neste mundo realmente somos zumbis.
Por isso tenho saudade do mundo do bule de chá.
5.
Sempre fui fascinada pelas redes de relações e influências mútuas de que geralmente não temos consciência, mas que descobrimos por acaso como coincidências surpreendentes, convergências do destino, todas aquelas pontes, parafusos, soldas e conectores que estudei em Correntes. Sou fascinada pela associação de fatos, pela busca de ordem. No fundo, acredito que a mente de um escritor é uma mente sintética que insiste em recolher todas as migalhas, procurando grudá-las de novo em um universo de totalidade.
Como escrever, como construir sua narrativa de modo que possa carregar aquela enorme forma do mundo como constelação?
É óbvio que tenho consciência da impossibilidade de retornar à narrativa sobre o mundo que conhecemos dos mitos, das fábulas e das lendas que, transmitidas boca a boca, respaldavam a existência de tudo. Hoje, aquela narrativa teria que ter muito mais dimensões e complexidade. Sabemos, de fato, muito mais, conhecemos ligações incríveis entre coisas aparentemente afastadas.
Vejamos um certo momento na história do mundo.
Hoje é 3 de agosto de 1492, dia em que do porto de Palos, na Espanha, zarpa uma modesta caravela chamada Santa María. O seu capitão é Cristóvão Colombo. Faz sol, os marinheiros ainda andam pelo cais e os estivadores carregam as últimas caixas de provisões para a embarcação. Está quente, mas uma brisa que sopra do oeste salva do desmaio as famílias que se despedem. As gaivotas passeiam solenemente pelo deque, acompanhando com atenção as ações humanas.
Esse momento, para o qual olhamos agora através do tempo, resultaria em morte de 56 milhões dos quase 60 milhões de indígenas americanos. A sua população correspondia então acerca de 10% de toda a população humana na Terra. Inconscientemente, os europeus levaram presentes mortíferos: doenças e bactérias às quais os habitantes nativos da América não tinham resistência. Somaram-se ainda a escravidão e os massacres impiedosos. O extermínio continuou durante anos e alterou a natureza da terra. Onde antes crescera feijão e milho, batatas e tomates, nos campos irrigados de maneira sofisticada, a vegetação selvagem retornou. Com o tempo, quase 60 milhões de hectares da terra cultivada se tornou mato.
Regenerando-se, a vegetação absorveu enormes quantidades de dióxido de carbono, o que levou ao enfraquecimento do efeito estufa. Isso, por sua vez, diminuiu a temperatura na Terra. É uma das várias hipóteses científicas que explicam a chegada à Europa da da pequena era glacial, que no final do século XVI causou um resfriamento prolongado do clima.
A pequena era glacial alterou a economia europeia. Durante as décadas seguintes, os invernos gélidos e longos, os verões frios e as precipitações intensas diminuíram a eficiência das formas tradicionais de agricultura. Na Europa Ocidental, as pequenas terras agrícolas familiares que produziam alimento para consumo próprio se revelaram ineficientes. Houve ondas de fome e surgiu a necessidade de produção especializada. Inglaterra e Holanda, os locais mais afetados pelo resfriamento, não podendo vincular sua economia à agricultura, começaram a desenvolver comércio e indústria. O risco de tempestades levou os holandeses a secar os poços e transformar terrenos alagáveis e zonas marítimas rasas em terra firme. O deslocamento da área de distribuição de bacalhau para o sul, catastrófico para a Escandinávia, foi favorável para a Inglaterra e a Holanda, permitindo que se tornassem potências marítimas e comerciais. O resfriamento significativo acometeu particularmente os países escandinavos. Perdeu-se o contato com a verde Groenlândia e a Islândia, os invernos severos diminuíram as colheitas e começaram anos de fome e carência. A Suécia voltou seu olhar ávido para o sul, travando guerras contra a Polônia (sobretudo porque o Báltico congelou, facilitando a travessia do exército) e se envolvendo na Guerra dos Trinta Anos na Europa.
Os esforços dos cientistas que procuram entender melhor a nossa realidade mostram que ela é uma rede de influências coesa e densamente entrelaçada. Já não é apenas o famoso efeito borboleta, que, como sabemos, postula que alterações mínimas nas condições iniciais de um processo podem ter, no futuro, consequências colossais e imprevisíveis. É também um número infinito de borboletas com suas asas em constante movimento. Uma onda potente de vida que atravessa o tempo.
A descoberta do efeito borboleta encerra, a meu ver, a época da crença inabalável do ser humano na sua própria força, sua capacidade de controle, bem como sua sensação de supremacia no mundo. Isso não o despoja do seu poder enquanto construtor, conquistador e inventor, mas evidencia que a realidade é mais complexa do que ele poderia ter jamais imaginado. E que ele é apenas uma parte ínfima daqueles processos.
Temos cada vez mais provas de que existem conexões espetaculares e, às vezes, muito surpreendentes em escala global.
Estamos todos — nós, plantas, animais, objetos — imersos no mesmo espaço regido pelas leis da física. Esse espaço comum tem seu formato, no qual essas leis esculpem uma quantidade incontável de formas mútuas e correspondentes. O nosso sistema circulatório se parece com as redes de drenagem, a estrutura de uma folha é semelhante aos sistemas da comunicação humana, o movimento das galáxias faz pensar nos redemoinhos da água que escorre na nossa pia. O desenvolvimento das sociedades lembra as colônias de bactérias. As escalas micro e macro revelam um sistema infinito de semelhanças. O modo como falamos, pensamos e criamos não é nada abstrato e desligado do mundo, mas é antes uma continuação, em outro nível, dos seus processos incessantes de transformação.
6.
Estou sempre me perguntando se é possível encontrar hoje alicerces para uma nova narrativa universal, absoluta, inclusiva, enraizada na natureza, cheia de contextos e, ao mesmo tempo, compreensível.
Será possível uma narrativa que transcenda as grades da comunicação do próprio “eu”, desvende uma área maior da realidade e revele relações mútuas? Que seja capaz de se distanciar de um centro repisado, óbvio e banal, e olhar para assuntos marginais, distantes do centro?
Fico feliz ao saber que a literatura manteve maravilhosamente o direito a toda espécie de excentricidade, fantasmagoria, provocação, grotesco e loucura. Sonho com altos pontos de vista e amplas perspectivas, em que o contexto vá muito além do que se podia esperar. Sonho com uma linguagem capaz de exprimir qualquer intuição, por mais vaga que seja. Sonho com uma metáfora que transcenda diferenças culturais e, enfim, com um gênero que se torne amplo, transgressor e, ao mesmo tempo, amado pelos leitores.
Sonho também com um novo tipo de narrador: um narrador “em quarta pessoa” que obviamente não se reduza a um constructo gramatical, mas antes consiga abranger tanto a perspectiva de cada personagem quanto a capacidade de ultrapassar o horizonte de cada um deles — que veja mais e mais, que seja capaz de ignorar o tempo. Ah, sim, sua existência é possível.
Você já se perguntou quem é aquele maravilhoso contador de histórias que na Bíblia exclama em voz alta: “No início era o verbo”? Aquele que descreve a criação do mundo, seu primeiro dia, quando o caos foi separado da ordem? Aquele que assiste à série da criação do cosmos? Aquele que conhece os pensamentos de Deus, conhece suas dúvidas e, sem que lhe tremam as mãos, põe no papel esta frase extraordinária: “e viu Deus que era bom”? Quem é esse que sabe o que Deus viu?
Descartando todas as dúvidas teológicas, podemos considerar aquela figura de um misterioso e sensível narrador como maravilhosa e significativa. É um ponto, uma perspectiva, a partir do qual se vê tudo. Ver tudo é reconhecer o fato de que afinal as coisas existentes são mutuamente entrelaçadas em um todo, mesmo que ainda não tenhamos descoberto as relações entre elas. Ver tudo significa assumir um tipo completamente diferente de responsabilidade pelo mundo, sendo óbvio que cada gesto “aqui” é relacionado com um gesto “acolá”; que cada decisão tomada em uma parte do mundo terá efeito em outra parte dele; que a distinção entre “meu” e “seu” começa a ser questionável.
Convém, portanto, narrar honestamente, de modo a ativar na mente do leitor um sentido de totalidade, uma capacidade de integrar fragmentos em um padrão singular, de descobrir constelações inteiras em partículas de acontecimentos. Narrar, ignorando o terror causado pela passagem do tempo e pela alteridade de espaços longínquos. Contar histórias para que seja claro que todos e tudo estão imersos no mesmo imaginário comum que produzimos cuidadosamente nas nossas mentes a cada rotação do planeta.
A literatura tem esse poder. Teríamos de descartar as categorias simplificadoras de literatura alta e baixa, popular e independente, e não levar a divisão em gêneros muito a sério. Desistir da designação “literaturas nacionais”, sabendo bem que o cosmos da literatura é uno, como a ideia de unus mundus, uma realidade psíquica comum, onde nossa experiência humana se unifica e o autor e o leitor desempenham papéis equivalentes: um através da sua criação, o outro por meio da sua constante interpretação.
Talvez devamos confiar no fragmento, já que são fragmentos que formam constelações capazes de descrever mais e de um jeito mais complexo, em vários níveis. As nossas narrativas poderiam infinitamente referenciar umas às outras, com seus personagens entrando em diversas relações. Penso que estamos perante uma redefinição daquilo que entendemos hoje por realismo e a busca por um realismo que nos permita ultrapassar as fronteiras do nosso ego e atravessar a tela de vidro pela qual vemos o mundo. De fato, a necessidade do real é hoje administrada pela mídia, redes sociais, relações diretas na internet. Talvez aquilo que inevitavelmente nos espera seja uma espécie de neossurrealismo, com pontos de vista redistribuídos de modo que não se tenha medo de lidar com o paradoxo e de remar contra a maré de uma simples ordem de causa e efeito. Ah, sim, a nossa realidade já se tornou surreal. Também tenho certeza de que muitas narrativas precisam ser reescritas em novos contextos intelectuais, inspiradas por novas teorias científicas. Parece-me da mesma forma importante, porém, uma constante evocação do mito e do imaginário humano por inteiro. Tal regresso às estruturas compactas da mitologia poderia trazer uma sensação de estabilidade no meio de toda a indefinibilidade em que vivemos. Acredito que os mitos são materiais de construção da nossa psique e não se pode ignorá-los (quando muito se pode não estar consciente da sua influência).
É provável que em breve apareça um gênio capaz de construir uma narrativa diferente, hoje ainda inimaginável, em que caiba todo o essencial. Essa maneira de narrar com certeza nos transformará, de modo que rejeitemos as perspectivas caducas e constritivas e nos abramos às novas, que, de fato, sempre existiram aqui, mas sem que soubéssemos enxergá-las.
Em Doutor Fausto, Thomas Mann escreveu sobre um compositor que inventou um novo tipo da música capaz de alterar o pensamento das pessoas. Mas Mann não descreveu em que consistia aquela música, fazendo com que nós apenas imaginássemos o seu som. Talvez seja precisamente este o papel dos artistas: oferecer um antegosto daquilo que poderia existir para que possa ser imaginado. E ser imaginado é a primeira etapa da existência.
7.
Produzo ficção, mas nunca é um coelho tirado da cartola. Quando escrevo, tenho de sentir tudo dentro de mim. Tenho de deixar que me atravessem todos os seres e objetos presentes no livro, todo o humano e não humano, vivente e não dotado de vida. Tenho de examinar cada coisa e cada pessoa de perto, com a maior seriedade, e personificá-las dentro de mim.
É para isso que eu preciso do sensível. A sensibilidade é uma arte de personificação, empatia, ou seja, uma busca constante por semelhanças. A narração é uma infinita vivificação, doação de existência a todas as migalhas do mundo que são as experiências humanas, situações enfrentadas, recordações. A sensibilidade personaliza tudo a que se refere, deixando que isso ganhe uma voz, ganhe um espaço e um tempo para existir e se expressar. É a ternura que faz com que um bule de chá comece a falar. A sensibilidade é a forma mais modesta do amor. É uma espécie de amor que não aparece em escrituras nem evangelhos, ninguém jura sobre ela, ninguém a evoca. Não tem seus emblemas nem símbolos, não leva a crime nem inveja.
Ela surge quando olhamos, com atenção e foco, para dentro de um outro ser, naquilo que não é “eu”.
A sensibilidade é espontânea e gratuita e vai muito além do compartilhamento empático de sentimentos. É mais um compartilhamento consciente, ainda que talvez um pouco melancólico, do destino. A sensibilidade é uma preocupação profunda com outro ser, com a sua fragilidade, singularidade, vulnerabilidade ao sofrimento e à passagem do tempo.
A sensibilidade revela laços, semelhanças e identidades entre nós. É um modo de ver que mostra o mundo como vivo, vivente, entrelaçado, cooperativo e interdependente.
A literatura é construída precisamente com base na sensibilidade em relação a cada ser diferente de nós mesmos. É o principal mecanismo psicológico do romance. Graças a essa ferramenta maravilhosa, a forma mais sofisticada da comunicação humana, a nossa experiência atravessa o tempo e chega àqueles que ainda não nasceram, mas que um dia conhecerão o que escrevemos, o que contamos sobre nós mesmos e o nosso mundo.
Não faço ideia de como será a sua vida, quem serão eles mesmos. Muitas vezes penso neles com uma sensação de culpa e vergonha.
A crise climática e política em que procuramos hoje nos posicionar e que queremos enfrentar, salvando o mundo, não surgiu do nada. Muitas vezes esquecemos que não é resultado de nenhum fado ou golpe do destino, mas de ações e decisões econômicas, sociais, ideológicas (inclusive religiosas) muito concretas. A ganância, o desrespeito à natureza, o egoísmo, a falta de imaginação, a constante concorrência, a irresponsabilidade reduziram o mundo à condição de um objeto que pode ser desmembrado, explorado e destruído.
Por isso acredito que preciso contar histórias como se o mundo fosse uma unidade viva que está se formando constantemente diante dos nossos olhos, e nós fôssemos uma parte dele, ao mesmo tempo pequena e poderosa.
* E. M. Forster, Aspectos do romance. Trad. de Sergio Alcides. São Paulo: Globo, 2005. [n. T.]