[N.A.] Leandro Oliveira e Jotabê Medeiros compartilham aqui seus diários da quarentena
A maior parte das coisas aqui na editora é feita por diversas pessoas em conjunto. E não porque temos uma equipe numerosa; ao contrário: pelo tamanho enxuto é que precisamos construir praticamente tudo de forma coletiva.
Completamos dois meses de isolamento e decidimos que não dá mais para ficar tão longe dessa turma — escritoras e escritores, designers gráficos, ilustradoras e ilustradores, tradutoras e tradutores. Fizemos, então, um convite aberto a esse pessoal: o que vocês gostariam de compartilhar com os leitores da Todavia neste período?
Este é o [N. A.].
Emprestamos a abreviação “nota do autor” porque são essas autoras e esses autores que, por meio de suas criações, nos ajudam a construir a editora, diariamente. Todas as terças e sábados, você verá aqui o que nossa turma escolheu compartilhar.
Obrigada pela visita :)
#VamosVirarEssaPágina
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Leandro Oliveira é autor de FALANDO DE MÚSICA e divide algumas ideias e sugestões sobre música, claro! “Aqui estão algumas referências que não dizem nada sobre nossa época... são peças soltas do mosaico humanista. Gosto de cultivá-las.”
Notas com música
Outro dia reli uma passagem do meu livro preferido de Milan Kundera, Os testamentos traídos. Na obra ele disserta sobre a leitura feita por um grande maestro, o compositor Leonard Bernstein, da partitura da Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky.
Fiquei impressionado com a inteligência auditiva do escritor tcheco. Ele encontrou algumas liberdades, como o alongamento do tempo de algumas notas para além do indicado, o relaxamento do pulso ao final. A seu juízo, tais gestos difamavam a genialidade do texto do compositor russo. Kundera credita toda a força daquela passagem musical exatamente à relação entre lirismo e assimetrias mecânicas do ritmo: Bernstein acabava por “domesticar” a passagem, fazendo com que a métrica ficasse mais “confortável” ao ouvido.
Diz Kundera: “Minha velha experiência com os tradutores: se eles deformam você, nunca é nos detalhes insignificantes mas sempre no essencial”.
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Por que, em Match Point (2005), Woody Allen usa ópera em vez de jazz? Lembro que fiquei intrigado no cinema quando o filme começou ao som do Enrico Caruso cantando Una furtiva lacrima. “Uau”, pensei “que sacana: ele segue na década de 1930 (de onde tira o grande repertório jazzístico de seus filmes), mas agora com a ópera…”.
Li em algum momento que a opção de Allen pela música do entreguerras é meramente pragmática: ele fica desincumbido do pagamento de muitos dos direitos autorais. De qualquer modo, quando decide pela ópera, querendo ou não, o diretor norte-americano cria uma série de sentidos mais ou menos complexos para este que, eu acho, é o melhor filme de sua fase europeia — depois, Woody faria ainda Vicky Cristina Barcelona (2008), Meia-noite em Paris (2011) e Para Roma, com amor (2012).
Senão, a ver. A passagem que intriga é a seção central de Match Point, a intensa cena de assassinato, que discorre inteiramente sobre a música Otello (1887), de Giuseppe Verdi. Na ópera, trata-se do monólogo em que o mouro se vê assoberbado pelo ciúme e decide que a única solução para sua honra é assassinar a esposa.
Antes, no filme, o personagem principal, Chris Wilton, por duas vezes havia sido chamado de “irish” — “irlandês”. É uma referência a sua origem que, assim como a do general veneziano, sugere um distanciamento social com seus interlocutores. Afinal, ambos são deseducados nos protocolos do autocontrole daquela elite com a qual convive — a dos “dogi” da República de Veneza de um lado e a da grande burguesia londrina do outro. E, talvez por isso, veem-se arrebatados pelos humores (seja frente a uma adversidade emocional, seja diante da beleza magnética de Scarlett Johansson).
Não sei se Allen pensou nisso, mas eu adoro imaginar que sim…
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Se você quiser uma dica de música para a semana: o jovem pianista islandês Víkingur Ólafsson acaba de lançar uma seleção curiosíssima e excelente de obras de Debussy e Rameau. Dois universos sonoros radicalmente diferentes. Uma viagem!
Leandro Oliveira é anfitrião do projeto Falando de Música, em que comenta o repertório da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. É pianista, regente e compositor.
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Jotabê Medeiros é autor das biografias de BELCHIOR e RAUL SEIXAS. Fez um vídeo tocando Raul com seu filho, isolados no sítio do autor, em Ibiúna. “Eu e meus filhos, de 4 e 6 anos, trabalhamos construindo uma casa na árvore durante a pandemia. No tempo em que escrevi Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida, eles se acostumaram a ouvir MUITO as canções do Raul. E se apaixonaram por Sociedade Alternativa, que aprenderam a cantar. Quando a casa ficou pronta, nós resolvemos fazer um sarau pra ela. Eu perguntei o que gostariam de cantar. Eles responderam Sociedade Alternativa. Então, fizemos esse ritual do vídeo. Nana, minha mulher, filmou e editou.”
Jotabê Medeiros nasceu em 1962, na Paraíba. É repórter e crítico musical, se formou em 1986 em Comunicação pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), no Paraná. Em três décadas de profissão, ele já atuou na CNT/Gazeta, na Veja São Paulo e nos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo.