[N.A.] Leandro Oliveira compartilha aqui seu diário da quarentena
A maior parte das coisas aqui na editora é feita por diversas pessoas em conjunto. E não porque temos uma equipe numerosa; ao contrário: pelo tamanho enxuto é que precisamos construir praticamente tudo de forma coletiva.
Completamos dois meses de isolamento e decidimos que não dá mais para ficar tão longe dessa turma — escritoras e escritores, designers gráficos, ilustradoras e ilustradores, tradutoras e tradutores. Fizemos, então, um convite aberto a esse pessoal: o que vocês gostariam de compartilhar com os leitores da Todavia neste período?
Este é o [N. A.].
Emprestamos a abreviação “nota do autor” porque são essas autoras e esses autores que, por meio de suas criações, nos ajudam a construir a editora, diariamente. Todas as terças e sábados, você verá aqui o que nossa turma escolheu compartilhar.
Obrigada pela visita :)
#VamosVirarEssaPágina
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Leandro Oliveira é autor de FALANDO DE MÚSICA e divide mais algumas ideias e sugestões sobre música, claro!
Notas com música II
Quando Thomas Mann escreveu em uma cópia do seu romance Doutor Fausto a dedicatória, “ao verdadeiro”, ele quis fazer um gesto de lisonja ao compositor Arnold Schoenberg — como ele, exilado em Los Angeles durante aqueles terríveis anos da Segunda Guerra Mundial. De fato, foi Schoenberg, e não o personagem Adrian Leverkühn, o criador da técnica dodecafônica, um dos grandes instrumentos da então novíssima música moderna.
Mas o hipersensível compositor vienense interpretou mal o significado do livro e alegou que Mann pretendia insultá-lo e degradá-lo, atribuindo sua invenção a Leverkühn. Ele teria chegado a dizer a um amigo, encontrado casualmente na rua: “Você precisa saber, eu nunca tive sífilis!” (ao que parece, a revista Time, alertada para a sensacional história, enfureceu Schoenberg ao perguntar se ele já havia sofrido de alguma doença venérea).
Mann, como todos nós, achou que a ideia de ter sido ele, um escritor com limitados conhecimentos musicais, aquele a ter roubado o método dos doze tons era totalmente absurda. No entanto, por insistência de Schoenberg, acrescentou uma nota no final de todas as edições futuras, afirmando que “o sistema de doze tons é na verdade a propriedade intelectual de um compositor e teórico contemporâneo, Arnold Schoenberg”.
Schoenberg teria ficado ainda mais furioso com a errata. Afinal, quem era Mann para dizer que ele, Schoenberg, era “um contemporâneo” seu? Mann deveria saber que era ele, Mann, “o contemporâneo” de Schonberg!
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No filme Platoon (1986), Oliver Stone usa uma das obras mais contundentes do repertório clássico norte-americano: o Adagio para cordas, de Samuel Barber (1910-1981).
Desde sua primeira execução pública, como parte de um dos famosos broadcastings realizados por Arturo Toscanini para rádio NBC (no dia 5 de novembro de 1938), a história da recepção da obra se confunde em muitos momentos com a própria história do país. O Adagio foi realizado em ao menos duas importantes ocasiões que a fizeram ser associada de modo muito direto aos sentimentos públicos de tristeza e luto: na morte de Franklin D. Roosevelt (em 1945, pela rádio) e na transmissão do anúncio da morte de John F. Kennedy (em 1963, pela televisão).
Dito isso, é interessante saber que o próprio compositor reaproveita a obra em um arranjo especialíssimo para vozes sem acompanhamento, como parte de uma Missa — e o texto é aquele do Agnus Dei (“Cordeiro de Deus, que tirais o pecado do mundo, tende piedade de nós”).
Num filme sobre o Bem e o Mal, com personagens que se chamam Elias (Willem Dafoe) e Chris (Charlie Sheen), se me fosse dada a empresa de ser consultor para a trilha, eu não teria dúvida: faria emplacar esta outra versão, mais sutil, rara e igualmente pungente.
Oliver Stone perdeu essa chance.
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Em finais de março comecei meu canal no YouTube. Nele, há uma playlist chamada “Falando TODO DIA de música”. São vídeos sobre música clássica para todos os gostos.
Para seguir e compartilhar, o link está aqui https://www.youtube.com/user/ocidentalismo
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Leandro Oliveira é anfitrião do projeto Falando de Música, em que comenta o repertório da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. É pianista, regente e compositor.