Meu amigo Raul, por Sylvio Passos

Por Sylvio Passos

Na carta ao parceiro de longa data, o fundador do Raul Rock Club revela as saudades que sente do amigo que foi comprar cigarros e nunca mais voltou

 

— Raul, você resolveu sair pra comprar umas cervejas e uns cigarros e nunca mais voltou, porra! Já se passaram trinta anos e a galera está aqui esperando até hoje essas malditas cervejas e esses cigarros. Inclusive uma galera nova chegou por aqui também. Cadê você, cara?! Por onde andou esse tempo todo?

— Porra, Sylvícola! Você está de sacanagem, né? Eu te avisei, antes de sair, que eu não voltaria mais pra essa merda. Que eu já estava de saco cheio disso tudo, dessa esculhambação generalizada. Que tudo que eu fiz foi em vão. Acho que você estava chapado demais e nem ouviu o que eu disse.

— Não… Não… Não, Raul. Eu tomei só umas quatro, ou dezoito, dosezinhas do velho e bom Jack e me lembro perfeitamente quando você pegou aquela sacolinha de tecido, feita de cânhamo, com a cara do Elvis estampada e que você tinha comprado na Califórnia. Você nem fechou a porta, apenas a encostou, e eu consegui ver você caminhando no corredor todo iluminado em direção ao elevador. Eu não tô doido, não, maluco. Você entrou naquele elevador e nunca mais voltou.

— Beleza… Beleza, Sylvícola. Quando acabar o maluco sou eu, como sempre foi. Mas, e aí, BRother? Estou aqui só de passagem, coisa rapidinha mesmo, visita de médico, saca? Só vim bater um papo contigo e já estou vazando pra, mais uma vez, nunca mais voltar. Uma tristeza gigantesca tomou conta de mim e, por isso, resolvi sumir sem avisar ninguém, porque tudo estava óbvio demais. Tudo muito previsível, e isso já vinha me enchendo o saco há muito tempo, entende? Você sabe disso.

— O.k., Raul. Entendo perfeitamente. Eu também venho sentindo essa mesma obviedade generalizada de uns anos pra cá. O mundo anda pra trás a cada nova eleição, seja ela onde for. A parte burra da humanidade continua se superando em sua especialidade. A outra parte, supostamente mais esclarecida, está totalmente corrompida e isso aponta que, logo mais, estará se juntando ao pessoal da ala jumenta. Todos caminhando rumo ao inevitável. É, Raul, a estupidez humana continua pra lá de ativa e assustadora.

— Entende agora por que eu tive que me mandar dessa merda, Sylvícola? De que valeu todo aquele “sonho que se sonha só”? De repente esse sonho virou um pesadelo sem fim. Eu não tinha outra saída, porra! Me retei com todos, inclusive comigo mesmo. Me senti um idiota, falando pra sonhadores que, mais tarde, se descobririam enganados ou idiotas também, saca?

— Caralho, Raul! É exatamente isso que eu estou vivendo, sentindo. Ainda não estou com essa vontade de jogar a toalha. Ainda não. Embora já esteja cansado dessa repetição, desse disco riscado. Mas eu sempre dou um toque sutil nele, e a música continua — até encontrar o próximo risco.

— Sylvícola, tenho que ir. Me demorei demais aqui com você. Foi bom te reencontrar depois daquela nossa última “conversa”, há trinta anos, quando não trocamos uma única palavra, não falamos absolutamente nada, mas falamos tudo. Foi a melhor conversa de toda a nossa vida. Fui! Ah… Toca Putos! E sempre se lembre: quando entrar num buraco de rato, de rato você tem que transar.

— Raul… Raul… Você esqueceu sua sacolinha de tecido, feita de cânhamo, com a cara do Elvis estampada… Hummm… Você vai voltar pra pegar essa porra de sacolinha.

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Sylvio Passos é músico, compositor, produtor cultural e fonográfico e fundador do Raul Rock Club/Raul Seixas Oficial Fã-Clube. 

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