Medo de ter medo

Por Claudia Wasserman

Em texto extra do ANUÁRIO TODAVIA, Claudia Wasserman fala sobre como os desastres recentes da “marcha ao centro” podem indicar uma nova tendência na história brasileira

“O meu temor é que não se consiga organizar o centro…Mas acredito que dá tempo de organizar.” A frase dita por FHC em janeiro de 2018 simboliza duas peculiaridades marcantes da cultura política brasileira: o medo da polarização e a tentativa de conciliação. Ambas, complexamente imbricadas ao longo de nossa história, provocaram uma “marcha ao centro” como o lugar da moderação e da racionalidade.

A temida polarização denota a existência de projetos políticos diferentes ou antagônicos em uma mesma sociedade – e significa, essencialmente, a firmeza de propósitos distintos. Mesmo considerando as críticas atribuídas a essa esquematização (direita e esquerda, moderados e radicais de cada lado), e que consensos sobre temas de interesse de toda a sociedade não são impossíveis, a polarização política pode ser sinônimo de partidos fortes com programas solidamente construídos.

O que define o centro político? Não se trata, como querem alardear seus defensores, de um espaço previamente definido entre a esquerda e a direita, nem de um ambiente onde seja possível a aproximação de projetos provenientes dos dois tradicionais campos da política. Esse espectro, demarcado imageticamente como o lugar da conciliação ou do consenso, na verdade é um espaço para alianças políticas não programáticas. É uma alternativa transitória e contingente que se apresenta como lugar de uma “terceira via”. Seu conteúdo é demarcado em cada conjuntura com objetivo de controlar a polarização. Mas, como afirmava Otávio Ianni a respeito do pacto populista, com o tempo o desgaste dos acordos evidencia as “condições relativamente precárias da aliança” e “o caráter não harmônico de um acordo entre desiguais”.

Conciliação na história – Há numerosos exemplos na história do Brasil de processos perpassados por anúncios de perigos reais ou imaginários, supostamente nocivos ao equilíbrio econômico, à razoabilidade social e à moderação política. A ideia de conciliação esteve presente desde a Independência, quando, para evitar perigos proveniente das Cortes portuguesas e as ameaças provenientes das classes populares, as elites brasileiras representadas por José Bonifácio apelaram ao príncipe regente e conseguiram proclamar uma independência sem rupturas. Para conter a instabilidade política imperante desde o Primeiro Reinado, D. Pedro II fundou o Ministério da Conciliação em 1853! Com isso, ampliou o centro político ameaçado pela radicalidade presente nos movimentos sociais, particularmente a Revolução Praieira de 1848, em Pernambuco.

Já no Século 20, o medo provocado pelas manifestações de operários, pelo Tenentismo e pela criação do Partido Comunista Brasileiro, nos anos 1920, reuniu no centro político elementos antes discordantes das oligarquias rurais e representantes da nascente burguesia industrial brasileira, simbolizados pela expressão do governador de Minas Gerais Antônio Carlos de Andrada: “Façamos a revolução antes que o povo a faça”. Projetos programáticos novamente ficaram de fora do jogo político. Em 1937, Getúlio Vargas conseguiu anuência do “centro” para manter-se no poder. Neste caso, o medo coletivo foi provocado por um perigo real, representado pela Intentona de 1935, e um perigo imaginário, representado por um falso plano comunista de tomada do poder, o Plano Cohen. Os extremos que polarizavam a sociedade brasileira – a Ação Integralista Brasileira (AIB), liderada por Plinio Salgado, e a Aliança Nacional Libertadora (ANL), liderada por Luís Carlos Prestes – foram afastados.

O centro político nunca foi tão ampliado no Brasil como a partir da redemocratização. O medo, tão evidente no período da ditadura, esteve presente na transição: a direita temia uma radicalização dos grupos que resistiram ao regime e as esquerdas temiam retrocessos autoritários. A ideologia da conciliação induziu a uma abertura controlada, sem ruptura e, sobretudo, sem justiça de transição. A ponto de um dos mais ferrenhos opositores da ditadura, Leonel Brizola, dizer ao voltar ao país em 1979: “É preciso agir com cautela, paciência e prudência”.

As ameaças seguiram no período posterior. O então presidente da FIESP, Mario Amato, afirmou que 800 mil empresários deixariam o Brasil caso Lula vencesse a eleição para presidente de 1989. Entre 1987 e 1989, atuou no parlamento um grupo denominado “Centrão”, uma alusão ao centro político ampliado, que visava garantir a transição sem sobressaltos. As eleições de 1994 e de 1998 estiveram marcadas pelo medo da volta da hiperinflação, incontrolável no Brasil até o governo Itamar Franco.

Antes do presente, em 2002, a tentativa mais potente de imputar medo à sociedade brasileira foi protagonizada pela atriz Regina Duarte, antes conhecida como namoradinha do Brasil. Numa propaganda eleitoral, ela dizia ter medo do desconhecido, da volta da inflação desenfreada e da instabilidade, numa alusão (de novo) a Luís Inácio Lula da Silva, então candidato opositor de José Serra.

Crise da neutralidade – Mesmo com a prescrição dessa zona neutra construída pelos políticos defensores do “centro” – e, mais recentemente, pela grande mídia –, no entanto, trinta e dois anos de democracia foram suficientes para evidenciar e positivar a existência de diferentes e inconciliáveis projetos para o Brasil. O acesso à participação política e a direitos civis de grupos sociais até há pouco afastados da condição de cidadãos permitiram a transformação de indivíduos antes obscuros em sujeitos políticos identificados com projetos inclusivos. Ficou mais difícil amedrontar uma população que ascendeu e conquistou direito à cidadania.

A reeleição e o impeachment da presidenta Dilma Rousseff acentuaram essa segmentação programática. Como reação, infundiu-se o medo da crise econômica, da corrupção, da insegurança das grandes cidades, do crime organizado, do caos e da intervenção militar. No mês de maio de 2018, o presidente Michel Temer desistiu de concorrer à reeleição em favor de seu ex-ministro da fazenda. “Não somos radicais na defesa dos extremos”, ele justificou. “Espero que [Henrique Meirelles] seja o único candidato de centro, e que continue o que começamos”.

Longe do lugar romântico da racionalidade, equilíbrio e moderação, o centro é um espaço de aparência neutra, onde se ocultam diferenças gritantes e que, passada a lua-de-mel entre seus defensores, pode resultar em catástrofes políticas como as que o nosso país viu recentemente. Assim, embora seus defensores sigam disseminando o temor que oprime, o “excesso de democracia” dos últimos anos faz com que, como o Riobaldo de Grande Sertão: Veredas, os brasileiros comecem a “ter medo de ter medo”. Nesse sentido, tanto o medo da polarização quanto a tendência à conciliação podem estar com os dias contados.

 

Claudia Wasserman é professora titular do Departamento de História da UFRGS.

 

doo.is