'Grafite sobre um fundo muito branco', por Claudia Rankine
Serena Williams e a verdadeira raiva numa quadra de tênis
Henessy Youngman, também conhecido como Jayson Musson, faz tutoriais em seu canal no Youtube Art Thoughtz para educar o público em questões de arte contemporânea. Em um de seus vários vídeos, ele fala de como se tornar um artista negro bem-sucedido, sugerindo ironicamente que a raiva das pessoas negras é vendável. Ele aconselha artistas negros a cultivarem “uma aparência de crioulo raivoso” assistindo ao vídeo de Rodney King, entre outras coisas, enquanto trabalham.
Youngman quer discutir expectativas em relação à negritude, assim como enfatizar as dificuldades de qualquer artista negro na tentativa de metabolizar a verdadeira raiva. Em seu vídeo, a raiva transformada em commodity se apoia na superfície em favor do espetáculo. Pode ser aplicada ou manipulada como um argumento racial e está ligada apenas à performance da negritude, e não a um estado emocional de determinados indivíduos em situações específicas.
Na ponte entre essa raiva vendável e “o artista” habita, em alguns momentos, a verdadeira raiva, que Youngman não aborda: aquela construída através da experiência e da luta diária contra a desumanização, travada nas vidas de todas as pessoas negras e não brancas, simplesmente por causa da cor da pele. Com o tempo, esse outro tipo de raiva poderia evitar a solidão, em vez de apenas reproduzi-la. Você começa a pensar, talvez equivocadamente, que esse outro tipo de raiva é, na realidade, uma forma de conhecimento: do tipo que esclarece e decepciona. Ela responde aos insultos e à tentativa de apagamento apenas para afirmar a presença, e a energia necessária para provocar, reagir e afirmar é acompanhada por uma decepção visceral: a frustração ao perceber que nenhuma visibilidade vai alterar as formas como o indivíduo é percebido.
Reconhecer esse fato é algo que pode ser devastador. Ou pode iluminar o apagamento desencadeado pelas tentativas de apagamento. Se esse discernimento cria um ser mais saudável, embora mais isolado, você não tem como saber. De qualquer modo, Youngman não fala sobre esse tipo de raiva. Ele não comenta que testemunhar a expressão dessa raiva mais comum e cotidiana pode fazer o observador acreditar que uma pessoa é “insana”.
É o que você pensa, numa tarde de domingo, bebendo um Arnold Palmer, assistindo à final feminina do US Open, ao prestar atenção no comportamento repentinamente explosivo de Serena Williams. Diante dos seus olhos, em HD, Serena é tomada por uma raiva que você reconhece e foi ensinada a manter a uma determinada distância para o seu próprio bem. A atitude de Serena, nesta tarde de domingo em particular, dá a entender que todas as injustiças com as quais ela se deparou nos jogos ao longo dos anos de sua ilustre carreira passaram diante dos seus olhos, e ela finalmente decidiu responder a todas com uma série de xingamentos. Nada, nem mesmo a repetição das negações (“não, não, não”) que ela usou em uma situação semelhante anos antes, como uma jogadora menos experiente no US Open de 2004, preparou você para isso. Oh meu Deus, ela enlouqueceu, você fala sozinha.
Como o corpo de uma mulher negra, vitorioso ou derrotado, se parece em um espaço historicamente branco? Serena e sua irmã mais velha Venus Williams fazem lembrar de Zora Neale Hurston, “eu me sinto mais negra quando jogada contra um fundo muito branco”. Essa frase tão apropriada, aplicada sobre a tela por Glenn Ligon, que fazia estêncil usando letras de plástico, manchas de pastel oleoso e grafite para transformar palavras em abstrações, parecia um anúncio publicitário para alguns aspectos da vida de todos os corpos negros.
A declaração de Hurston aparece nos aparelhos de TV com Serena e Venus: às vezes elas vencem, às vezes perdem, elas se machucaram, foram felizes, ficaram tristes, foram ignoradas, vaiadas intensamente (veja o Indian Wells, que as irmãs boicotaram a partir de 2001), elas foram ovacionadas, e em meio a isso tudo há quem se enfureceu apenas por elas estarem ali — um grafite contra um fundo muito branco.
Durante anos você atribuiu a Serena Williams o tipo de resiliência apropriada apenas àqueles que existem em celuloide. Nem seu pai, nem sua mãe, nem sua irmã, nem seu Deus Jeová, nem o Acampamento NIKE seriam capazes de protegê-la em última instância das pessoas que sentiam que um corpo negro não pertencia à sua quadra, ao seu mundo. Desde o início ficou claro que Serena se daria melhor tentando sobreviver em uma pintura de duas dimensões de Millet do que nas quadras de tênis deles — melhor colocar toda aquela força de trabalho nas fantasias que eles tinham de seu corpo cultivando a terra, em vez de ser pega na turbulência de nossos dramas ancestrais, como um navio lutando contra uma tempestade em uma paisagem de Turner.
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Mais uma vez as frustrações de Serena, as decepções dela, existem em um sistema que você entende, mas tenta não compreender de nenhum modo razoável, porque seria compreender o apagamento do ser como algo sistêmico, comum. Para Serena, a inferiorização diária é um fogo baixo, uma goteira constante. Cada olhar, cada comentário, cada penalidade equivocada aflora da história, passa por ela, toca você. Compreender isso é ver o mecanismo que ajusta Serena como qualquer outro corpo negro no nosso pano de fundo americano. “Você não é aquela que me fodeu aqui da outra vez?”, ela pergunta à juíza Asderaki. “Sim, foi você. Não olhe para mim. Sério, nem olhe para mim. Não olhe para o meu lado. Não olhe para o meu lado”, ela repete porque é simples assim.
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Claudia Rankine é uma poeta e prosadora americana, autora de Citzen (Graywolf Press, 2014), onde foi publicado o trecho traduzido por Stephanie Borges para o Anuário.