Fora da jaula: a apologia da impopularidade do governante como sintoma da crise da democracia
Leia texto extra do ANUÁRIO TODAVIA, por Mário Magalhães
Numa tarde da segunda metade da década de 1960, o governador do Amazonas permitiu-se uma licença com o presidente da República, um cearense de prosa envolvente e corpo quasimodesco. Artur César Ferreira Reis perguntou a Humberto de Alencar Castello Branco: “O senhor sabe que é o homem mais antipatizado da nação?”. O marechal deu de ombros: “Sei. Isso, porém, não tem importância. Estou cumprindo o meu dever”.
O ditador assinalara em seus apontamentos: “O país precisa de um presidente despreocupado com sua popularidade”. Castello supunha que a rejeição dos cidadãos decorreria das ações de um governo virtuoso, empenhado em favorecer os próprios cidadãos, ainda que à revelia das opiniões e vontades deles.
Louvaminheiros reverenciavam o governante que se assenhoreara do Planalto em abril de 1964. Castello exibia “a bravura de se manter sobranceiro sobre a impopularidade, virtude sem a qual não teria levado a bom termo a ciclópica obra empreendida”, escreveu o ministro Luís Viana Filho, chefe da Casa Civil. “O fantasma da impopularidade, se o atormenta, não o intimida”, propagandeara o matutino carioca Diário de Notícias. O Jornal do Brasil celebrou em 1967: “Um governo é merecedor de respeito quando não desce à comercialização da popularidade”.
Castello enumerou causas da antipatia que granjeara: “Enfrentei a decisão de descongelar preços demagogicamente contidos, que solapavam nossa capacidade de investir. Os combustíveis foram reajustados para dar recursos à Petrobras e às rodovias. As tarifas de energia elétrica e telefone foram descongeladas [...]”. De 1965 para 1966, a ditadura contivera a expansão monetária. O PIB engordou 6,7% em 1966, mas a dieta sacrificava os assalariados. Em 1965, o custo de vida aumentara 65,7% na Guanabara e 61,7% na cidade de São Paulo. O reajuste anual do salário mínimo, em março de 1966, limitou-se a 27,2%.
MAQUIAVEL E NIZAN – Quarenta e nove anos, um mês e 27 dias depois de Castello Branco entregar a faixa ao marechal Arthur da Costa e Silva, Michel Temer tomou posse na Presidência. Em 12 de maio de 2016, o vice substituiu a presidente deposta Dilma Rousseff. Em dezembro daquele ano, o Datafolha informou que a popularidade dele despencara. Em julho, 31% consideraram a gestão de Temer ruim ou péssima; em dezembro, 51%.
O presidente investia na mudança das legislações trabalhista (obteve sucesso) e previdenciária (fracassou). Patrocinava a Proposta de Emenda Constitucional que limitava gastos públicos, a PEC do Teto (promulgada no finzinho de 2016). Temer minimizou o resultado da pesquisa. “Um governo com popularidade extraordinária não poderia tomar medidas impopulares”, afirmou. “Estou aproveitando a suposta impopularidade para tomar medidas impopulares.”
Ele reproduziu o discurso que escutara em novembro de 2016 numa reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. O publicitário e empresário Nizan Guanaes fizera o elogio da impopularidade como vantagem, oportunidade e desafio: “Já que o governo ainda não tem índices de popularidade altos, aproveite, presidente. A popularidade é uma jaula. Ninguém faz coisas contundentes com altos níveis de popularidade. Então, aproveite que o senhor ainda não tem altos índices de popularidade e faça coisas impopulares que serão necessárias e que vão desenhar este governo para os próximos anos”. Dezenas de conselheiros aplaudiram o orador. O presidente também bateu palmas. Nizan prosseguiu: “Aproveite sua impopularidade, tome medidas amargas. Aliás, este é o grande desafio das democracias no mundo: como fazer coisas impopulares”.
Michel Temer repetiu Nizan Guanaes, que ecoara o Nicolau Maquiavel do capítulo VIII d’O Príncipe: o governante que conquista um Estado deve impor aos governados a maldade não a conta-gotas, mas como enxurrada. E assim procedeu ou tentou proceder o presidente. Em maio de 2018, levantamento CNT/MDA estimou em 0,9% a intenção de voto na sua reeleição.
VIRTUDE E ECLIPSE - A proclamação envaidecida da impopularidade do governante, mesmo se retórica, expõe a degradação da democracia. No Brasil republicano, foram recorrentes os chefes do Executivo malqueridos, porém essa condição quase nunca foi alardeada como mérito ou consequência de méritos.
Castello e Temer, separados na história por meio século, empalmaram a Presidência sem se submeter ao sufrágio popular – ao menos não para o cargo que passaram a ocupar. Beneficiaram-se de rupturas institucionais. João Goulart havia sido eleito vice em 1960, e as urnas o chancelaram como presidente ao restituir-lhe, no plebiscito de janeiro de 1963, os plenos poderes suprimidos em setembro de 1961. Dilma recebera 54 milhões e meio de votos em 2014.
A impopularidade compreendida como atestado de êxito corresponde à louvação do despotismo: quanto mais distantes estivessem as ações do governante e as aspirações dos cidadãos, mais bem-sucedido ele seria. Ao contrário do que pontificou Guanaes, popularidade não constitui empecilho para “fazer coisas contundentes” (apesar de não assegurar eficácia). Que o digam Itamar Franco/Fernando Henrique Cardoso e o Plano Real. Ou Luiz Inácio Lula da Silva e suas políticas públicas contra a miséria.
Se o governante emerge pelo voto popular, e deste depende para não submergir, mais vinculado tende a estar à coletividade que pressupõe representar – essa é uma ideia democrática. A promoção da impopularidade como bônus político é característica de quadras de eclipse ou réquiem da democracia.
Castello e Temer escalaram na economia gestores liberais e, os do século XXI, neoliberais. A repulsa popular a Castello e Temer derivou também ou sobretudo de suas políticas econômicas. Seria inconsistente, contudo, a associação esquemática do liberalismo à glorificação da impopularidade proveitosa. No segundo mandato, FHC amargou modesta aprovação. Nem por isso jactou-se dela. Seu time tinha punch neoliberal, embora o ministro Pedro Malan manifestasse discordância de tal interpretação.
Identidade com a vontade popular não garante governos dignos e eficientes, como ensina a história, às vezes com sangue e tragédia. Governantes que violam a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em nome de excitações, preconceitos e ódios da turba, profanam a democracia em vez de consagrá-la. A tortura não se torna justa, mesmo se endossada pela maioria. Entre dignidade humana e maioria, a democracia abraça a dignidade.
Esses juízos não contradizem a convicção de que cabe aos cidadãos julgar soberanamente seus governantes. É prerrogativa daqueles pôr e tirar estes. Assim como é direito – e dever – dos governantes proteger incondicionalmente os direitos humanos.
Filhotes (e parteiros) de golpes de Estado, como Castello e Temer, dispensam prestar contas aos eleitores, pois não foram escolhidos por eles. Há governantes legitimados pelo voto que agem de modo semelhante. Descompassos entre governantes e cidadãos são comuns. Rara, e denunciadora da democracia em crise, é a apologia da impopularidade. Governante impopular é espectro, e não virtude.
Mário Magalhães é jornalista e escritor. Trabalhou nos jornais Tribuna da Imprensa, O Globo, O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo e é colunista no The Intercept Brasil. Recebeu cerca de vinte prêmios e menções honrosas no Brasil e no exterior, entre os quais o Every Human Has Rights Media Awards, o Prêmio Vladimir Herzog, o Prêmio Dom Hélder Câmara e o Prêmio Esso de Jornalismo.