Como ler um livro com o qual não nos identificamos
Juliana Cunha comenta como Ottessa Moshfegh subverte estratégias narrativas baseadas na autoimagem
Do alto de seu loft no Upper East Side, uma garota que é a própria personificação do privilégio embarca em um projeto que consiste em hibernar por um ano inteiro. Sua intenção é de que cada célula do seu corpo se renove e de que, assim, ela se torne uma pessoa totalmente nova, deixando para trás tudo o que lhe aflige. A parte do sono talvez reflita uma ambição coletiva dos nossos tempos, mas, de resto, fica difícil se identificar com uma protagonista sem nome, sem defeitos físicos e sem perrengues que coincidam com os passados pela maioria de nós.
A identificação com o personagem — ainda que ele seja um vilão — está na base da apreciação de romances. Em Poética, Aristóteles já dizia que a tragédia era o terreno do homem melhor do que nós, enquanto a comédia se dedicaria ao homem pior do que nós. O sujeito igual a nós só se evidencia com a ascensão do romance. Desde então, há uma expectativa por parte do público de se ver nas páginas dos livros — ou de ao menos ver alguém com quem ele consiga se identificar. Ao abrir mão desse recurso, a escritora Ottessa Moshfegh se coloca num mato sem cachorro. Uma das graças do livro é ver como ela cava uma saída desse mato tendo intencionalmente se desvencilhado das ferramentas mais consagradas.
Outra graça é notar como Moshfegh lança mão de fórmulas cacetes dos nossos tempos em uma adesão ora crítica, ora descarada, mas que sempre rendem algo além do novo clichê. Ao focalizar a relação dúbia entre a protagonista e sua amiga Reva, o livro desafia, por exemplo, o teste de Alison Bechdel [autora de FUN HOME], que tende a considerar machistas obras que não possuam: pelo menos duas mulheres (1) que conversem entre si (2) sobre algo que não seja homem (3). Quase todos os diálogos do livro são entre as duas (aprovado), mas homens frequentemente são o tema (reprovado). Embora discutam sobre homens, eles estão sendo usados antes como desculpa para que a conversa exista (ou como a casquinha que elas conseguem acessar de problemas mais profundos) do que como preocupação central da vida dessas mulheres.
As principais relações do livro se dão entre mulheres: a narradora e Reva, a narradora e a dra. Tuttle, a narradora e as mulheres dos filmes, Reva e sua mãe, a narradora e sua mãe, a mãe de Reva e sua melhor amiga, Reva e a mulher do seu amante, Reva e todas as outras mulheres do mundo. Essas mulheres, no entanto, frequentemente se desprezam, não se escutam, falam sozinhas, competem umas com as outras — e se aproximam de modo no mínimo estabanado.
Flertando com estereótipos e lugares-comuns da literatura e da vida contemporâneas, Moshfegh entrega um romance melancólico e corrosivo. Em tempos de algoritmos e de obras que parecem vir sob medida para a autoimagem do público, aprisionando a ficção a fórmulas fáceis de explicar, é um alento lembrar que a arte sempre soube contornar suas restrições, embrenhar-se nas porosidades. Este é um livro que certamente consegue fazer isso.