A transferência
Os autores de A GUERRA apresentam uma análise criteriosa sobre a situação do PCC em 2019
Desde que o primeiro presídio federal começou a funcionar em Catanduvas, no Paraná, em junho de 2006, autoridades de segurança e de justiça discutem sobre a necessidade de isolar nessas unidades a cúpula do Primeiro Comando da Capital (PCC), incluindo aquele que as autoridades apontam como seu principal chefe, Marcos Herbas Camacho, o Marcola.
Ao longo dos anos, os principais nomes de outras facções brasileiras, como Fernandinho Beira Mar e Marcinho VP, do Comando Vermelho (CV), Nem, da Amigos dos Amigos (ADA), além de lideranças de outros estados — de grupos como o Primeiro Grupo Catarinense (PGC), de Santa Catarina, Família do Norte, do Amazonas, Sindicato do Crime, do Rio Grande do Norte, Guardiões do Estado, do Ceará —, frequentaram as trancas duras das novas penitenciárias (atualmente, o Sistema Penitenciário Federal tem cinco unidades).
Muitos fatores contribuíram para a expansão do PCC para além das fronteiras brasileiras, na construção de uma rede eficiente de distribuição de drogas que fez da facção o grupo mais bem articulado no mundo do crime no Brasil — uma história já descrita no livro A guerra: A ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil. A permanência da cúpula na penitenciária paulista por mais de uma década foi, certamente, um dos fatores importantes para a estruturação de uma rede econômica, política e moral que atravessou diversos estados brasileiros e chegou a países fronteiriços.
Até mesmo os criminosos de facções rivais chegaram a questionar claramente a situação: “Por que só o Marcola não vai para o presídio federal?”, foi o que repetiu várias vezes uma liderança do PGC presa em uma unidade federal durante entrevista mencionada em A guerra. “Me explica: por que todas as facções têm os seus líderes no ‘federal’, menos o PCC?” Nem mesmo a inclusão, em dezembro de 2016, da cúpula do PCC no Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), aplicado no Centro de Readaptação Penitenciária de Presidente Bernardes, unidade paulista de segurança máxima, o convencia. “Só vou acreditar quando o Marcola for para o ‘federal’. Enquanto estiver em São Paulo, não ponho fé.”
Essa situação, todavia, mudou na última semana. A transferência de integrantes da cúpula da facção paulista para unidades federais ocorreu meses depois do pedido de transferência feito pelo Ministério Público de São Paulo, na figura do promotor Lincoln Gakya. Ao todo, foram para o sistema federal 22 integrantes apontados como pertencentes ao primeiro e ao segundo escalão do PCC, como Marcola. As pressões para a transferência tornaram-se cada vez mais intensas a partir de planos de fuga e ameaças de mortes que vinham sendo identificadas pelas autoridades paulistas em bilhetes e conversas entre os presos. Com as transferências, pretende-se quebrar a cadeia de comando da cúpula da facção sobre as bases espalhadas em São Paulo e em diversos estados brasileiros.
O regime disciplinar comum das penitenciárias federais estabelece um cotidiano rígido. São permitidas não mais que duas horas de banho de sol no pátio interno, em grupos pequenos de presos monitorados por sistemas de captação de imagem e de som; contato com advogados ocorrem apenas no parlatório, local onde preso e visitante são separados por um vidro e conversam através de um sistema eletrônico. Também esses contatos — mesmo com advogados — são monitorados com captação de imagem e som. As visitas íntimas, que antes eram agendadas antecipadamente e realizadas em locais específicos, estão suspensas desde agosto de 2017. Através de um decreto publicado no mesmo dia da transferência da cúpula paulista, o regime já duríssimo das penitenciárias federais tornou-se ainda mais rigoroso: as visitas de familiares, até então realizadas no pátio de sol, passaram a ser restritas ao parlatório (o decreto prevê exceções para alguns perfis de presos que, no entanto, excluem os integrantes de organizações criminosas).
Em relação a eventuais retaliações, é importante considerar algumas questões que tornam o atual cenário bem diferente daquele de treze anos atrás, quando, em maio de 2006, uma grande transferência de integrantes do PCC fez com que a facção ordenasse ataques concentrados, num mesmo fim de semana, a dezenas de agentes públicos. Uma reprise, nesse sentido, é menos provável.
Em primeiro lugar, porque o momento do PCC é outro. A ampla expansão dos negócios trouxe aos integrantes do grupo uma necessidade de exercer um cálculo de custos e benefícios que não existia em 2006. Atualmente, há muito dinheiro em jogo nessa ampla rede de empreendedores criminais, exigindo deles uma racionalidade econômica capaz de dimensionar os prejuízos de ataques tresloucados. O prejuízo aos negócios seria grande no caso de confrontos abertos. Nesses 25 anos de história, como a maioria dos integrantes já está presa e sob a tutela do Estado, aprenderam que estão expostos facilmente a retaliações e punições. “O Estado sempre vence” foi um mantra que passou a ser repetido por um advogado que atuou para importantes lideranças do grupo depois dos ataques de 2006.
Por outro lado, a posição do Estado e, especialmente, das forças de segurança é muito diferente daquela. Em 2006 o fator surpresa foi preponderante para as condições de efetivação dos ataques. Desta vez, foi possível perceber a articulação de diversas agências e atores estatais de maneira a evitar qualquer reação em escala — policiais estaduais e Polícia Federal, Ministério Público, Forças Armadas, Secretaria de Administração Penitenciária e órgãos de inteligência trabalharam juntos e de forma integrada. Não há dúvidas de que os órgãos de segurança buscaram se antecipar a possíveis formas de reação do PCC. Isso porque hoje já se avançou muito no que diz respeito ao conhecimento sobre o funcionamento da facção por parte de alguns atores estatais. Investigações, apreensões de cartas, bilhetes, cadernos, relatórios, planilhas, pen-drives, computadores, interceptações telefônicas, monitoração de redes sociais são alguns dos elementos que permitiram aos agentes estatais se apropriarem, ao menos em parte, da dinâmica da facção, de suas estratégias, de suas prioridades, de suas vulnerabilidades.
Tanto é assim que, nos últimos embates com as autoridades, o PCC já havia optado por ataques isolados, que amedrontaram os funcionários públicos, mas não causaram comoções públicas a ponto de mobilizar amplas ofensivas do governo. Em 2012, por exemplo, houve um salve (comunicado interno do PCC) determinando a morte de policiais que agissem de forma violenta contra os filiados da facção. Ao longo do ano, morreu quase uma centena de policiais e nada permitia afirmar categoricamente que se tratava de ataques do PCC — isso só era perceptível para alguém que “ligasse os pontos” entre as dezenas de “latrocínios” envolvendo policiais que ocorreram naquele ano. Para responder aos ataques, se tornou prática recorrente entre os policiais a articulação via WhatsApp de vinganças que resultaram em grandes chacinas de moradores de bairros pobres.
No que se refere aos efeitos da transferência no âmbito do próprio PCC, contudo, eles tendem a ser menos importantes do que se espera.
Em primeiro lugar, pelo menos desde 2011 a facção vem dando autonomia de decisão a integrantes que estão do lado de fora dos presídios para driblar eventuais isolamentos das lideranças presas. Instituir a figura do “contenção” — pessoa que assume o lugar de outra que está “fora do ar”, ou seja, sem comunicação — é uma prática bastante utilizada no âmbito do PCC. As transferências, além disso, estão sendo anunciadas desde outubro de 2018, tempo mais que suficiente para que, em tese, o grupo se reorganizasse e se preparasse para o isolamento de sua cúpula.
Há ainda um acúmulo de regras que, através de estatutos, cartilhas e salves foram colocadas no papel, consolidando protocolos de ação, o que permitiu que o funcionamento do grupo dependesse menos de atores individuais. A grande façanha do PCC foi justamente saber como crescer pelas brechas do sistema, criando uma estrutura bem azeitada e despersonalizada capaz de garantir o funcionamento da rede de distribuição sem depender da figura de um chefe. Dessa forma, mesmo com a cúpula na tranca dura, os negócios continuarão sendo feitos.
Por mais que se olhe para a trajetória passada, no entanto, prever o que pode acontecer é tarefa impossível. São muitos os fatores que podem impactar de maneira contundente o desenrolar dos acontecimentos interna ou externamente ao PCC. A combinação e a interação entre esses fatores podem produzir outras tantas possibilidades de efeitos.
Uma delas diz respeito ao desgaste que a cúpula do PCC vinha sofrendo nos últimos dois anos, principalmente após o episódio do assassinato de dois de seus integrantes mais importantes que estavam fora do sistema: Gegê do Mangue e Paca. A descrição e os desdobramentos do caso foram narrados em A guerra. Aqui, vale observar que a cúpula ainda não conseguira aparar todas as arestas surgidas a partir de então e que tudo o que ocorrera ainda era motivo de discussão e até de questionamentos por algumas alas do PCC. Neste sentido, o isolamento pode acelerar esses processos, dar espaço para a ampliação desses questionamentos, abrir caminho para o surgimento de uma nova geração de líderes, eventualmente, com outro perfil de atuação, e reconfigurar a estrutura e a dinâmica da facção. Pode ser também que aqueles que ocuparão as posições que ditarão as diretrizes gerais estejam bastante afinados com a cúpula e poderão dar continuidade ao “desenrolo” da situação em aberto, de maneira a “colocar uma pedra em cima” dela.
O isolamento nas prisões federais pode, ainda, produzir um efeito certamente indesejado pelas autoridades, mas bastante recorrente na história do PCC: renovar a confiança na legitimidade da autoridade da cúpula, especialmente na sua figura mais “notável”, Marcola, reforçando o caráter opressivo que os líderes vivenciaram em razão da dedicação à causa da “Família”. Nesse sentido, a transferência mitigaria de uma vez por todas o questionamento de sua autoridade em decorrência dos supostos privilégios que lhes seriam concedidos e que os teriam mantido até então “imunes” a essas punições. Ou seja, a transferência para o presídio federal interromperia um processo de deslegitimação da cúpula, permitindo a sua reversão e, portanto, o fortalecimento de sua liderança e autoridade.
Também são imprevisíveis os efeitos da disseminação de informações falsas. Na sexta-feira, por exemplo, as redes sociais passaram a compartilhar freneticamente uma série de salves com supostas ordens vindas do PCC e anunciando toques de recolher, ameaças de atentados e rebeliões em presídios. Todos eram claramente falsos, mas a velocidade e a dimensão da distribuição já haviam criado um clima de grande tensão em São Paulo. Áudios de supostos policiais e agentes penitenciários também passaram a circular falando de seus receios nas redes e convocando a atenção redobrada dos colegas. Nesse clima, atos individualizados e sem conexão direta com o PCC e/ou com as transferências podem funcionar como rastilhos de pólvora. De qualquer forma, o estrago já estava sendo feito. O medo, mais uma vez, se espalhava como um poderoso veneno, diminuindo o espaço para a racionalidade e para o bom senso, provocando o desespero de familiares de pessoas presas e disseminando grande apreensão, principalmente, entre a população da periferia, que sofre mais de perto os efeitos desse clima.
Justamente para tentar evitar a erupção de ações isoladas e descoordenadas sobre as quais seria difícil exercer qualquer controle, no dia 14 de fevereiro um salve teria sido divulgado a partir de uma das Sintonias (coletivos decisórios) do PCC, ressaltando a necessidade de agir com inteligência e força neste momento, se unindo para “não cair no jogo sujo dos inimigos”. A mensagem enfatiza que ninguém deverá agir com hostilidade e tomar nenhuma atitude isolada dentro ou fora das prisões, assegurando que a atitude de transferir os “irmãos” está sendo avaliada, reiterando um dos mantras da facção: “cada ação tem uma reação”. A mensagem finaliza com o apelo para que todos os irmãos permaneçam “em sintonia”, “firmes em suas funções”, pois, as “engrenagens” da facção continuam “estabilizadas” para a eventual necessidade de atuação “de forma coordenada e objetiva”.
Vale ainda refletir sobre os riscos implicados na própria transferência. O PCC é o grupo com maior número de presos no Sistema Penitenciário Federal. Apesar disso, a maioria consistia de integrantes de segundo ou terceiro escalão da Sintonia dos Estados e Países, especialmente presos que cumpriam penas fora de São Paulo. Eram poucos os membros da cúpula da facção nessas unidades, mas esses foram justamente os acusados de aterrorizar os servidores públicos e de causar os poucos distúrbios concretos ocorridos no sistema. Entre 2016 e 2017, foram acusados de mandar matar três agentes penitenciários federais, impulsionando a ampliação das restrições no âmbito das prisões federais, com a proibição das visitas íntimas, mencionada anteriormente.
Dentre as razões que podem ter contribuído para evitar a transferência da cúpula do PCC para o Sistema Federal reside a dúvida quanto a sua capacidade de convulsionar, perturbar e, no limite, implodir a estrutura de segurança e eficiência que assegura a “função” dessas unidades prisionais. Como dissera, em A guerra, um preso que integrava a Sintonia dos Estados e Países e que já havia passado mais de uma vez pelo Sistema Penitenciário Federal: “Eles não vão pagar para ver se vai morrer agente penitenciário, ter rebelião… Eles não vão querer desmoralizar o sistema”.
Isso quer dizer que a transferência da cúpula paulista para as prisões federais coloca à prova a capacidade desse sistema de suportar a possível pressão sobre sua estrutura.
Certo é que não existe saída fácil e rápida para lidar com um desafio tão complexo como o representado pelas organizações criminais brasileiras. Também é certo que o governo federal está muito longe de lidar com a raiz do problema. O “pacote anticrime” apresentado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública está assentado na ampliação da política de encarceramento massivo, opção que justamente fez das prisões centros de recrutamento e de fortalecimento das redes criminais que se espalham pelo Brasil e por países vizinhos. É necessário, ainda, considerar o alto custo de um preso no Sistema Penitenciário Federal, e, por isso, a impossibilidade concreta de manter a política de isolamento para as “lideranças” que continuarão sendo produzidas nas prisões estaduais.
Bruno Paes Manso é jornalista, economista e doutor em ciência política pela USP, e Camila Nunes Dias é doutora em sociologia pela USP e professora da Universidade Federal do ABC. Os dois são autores de A Guerra: A ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil.
*Imagem da série "Apreensões", de Bob Wolfenson, usada na arte da capa de A Guerra.