Trecho do livro
Ao entrar no salão de festas do Grand Hôtel & Belvédère de Davos, em 17 de março do mesmo ano, Martin Heidegger provavelmente também teve a sensação de ter, literalmente, chegado aonde queria. Pois esse é, sem dúvida, o grande palco filosófico que o pensador de 39 anos, oriundo da Floresta Negra, sentia ter escolhido para conquistar desde o início da mocidade. Por esse motivo, nada em sua apresentação deve ser considerado casual. Nem o terno de corte justo, esportivo, que destoava dos fraques clássicos dos dignitários, nem o cabelo penteado para trás, muito assentado, nem o rosto moreno feito o de um camponês, queimado pelo sol, nem
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Ao entrar no salão de festas do Grand Hôtel & Belvédère de Davos, em 17 de março do mesmo ano, Martin Heidegger provavelmente também teve a sensação de ter, literalmente, chegado aonde queria. Pois esse é, sem dúvida, o grande palco filosófico que o pensador de 39 anos, oriundo da Floresta Negra, sentia ter escolhido para conquistar desde o início da mocidade. Por esse motivo, nada em sua apresentação deve ser considerado casual. Nem o terno de corte justo, esportivo, que destoava dos fraques clássicos dos dignitários, nem o cabelo penteado para trás, muito assentado, nem o rosto moreno feito o de um camponês, queimado pelo sol, nem a chegada muito atrasada àquele lugar e muito menos o fato de, em vez de tomar assento nas primeiras fileiras, no seu lugar reservado, ter escolhido sem maiores titubeios misturar-se no centro do salão à horda de estudantes e jovens pesquisadores igualmente recém-chegados. Curvar-se às convenções vigentes sem quebrar algum tabu era impensável. Pois para alguém como Heidegger não havia algo como um filosofar certo no errado. E nesse tipo de reunião de eruditos num elegante hotel suíço, quase tudo deveria lhe parecer errado.
No ano anterior, Albert Einstein tinha sido o conferencista a proferir a palestra inaugural dos “encontros universitários de Davos”. Em 1929, Martin Heidegger foi convidado para ser um dos oradores principais. Ele daria três palestras nos dias seguintes, bem como participaria, no final, de um debate com Ernst Cassirer — o segundo peso pesado filosófico do evento. Embora as circunstâncias possam tê-lo desagradado profundamente, o prestígio e o reconhecimento relacionados àquele debate despertaram os desejos mais profundos de Heidegger.6
Apenas dois anos antes, no início de 1927, ele publicara Ser e tempo, uma obra que em poucos meses foi considerada um novo marco do pensamento. Por meio de seu grande êxito, o filho de um sacristão, nascido em Meßkirch, sul da Alemanha, confirmou uma fama que nos anos anteriores — e nas palavras de Hannah Arendt, sua aluna (e amante) à época — o elevava a “rei secreto” da filosofia de língua alemã. Heidegger escrevera a obra em 1926, sob enorme pressão de tempo; na verdade, deixou-a pela metade. Com Ser e tempo, um livro extraordinário, ele criou as condições formais para sair da detestada Marburg e retornar à sua alma mater Freiburg. Em 1928, Martin Heidegger assume ali a prestigiosa cadeira de seu antigo professor e patrocinador, o fenomenologista Edmund Husserl.
Enquanto John Maynard Keynes usou a imagem transcendente de “Deus” por ocasião do retorno de Wittgenstein a Cambridge, a escolha de Arendt, “rei”, aponta para uma vontade de poder e, portanto, de dominância social, que Heidegger exprimia claramente à primeira vista. Onde quer que se apresente ou apareça, Heidegger nunca é apenas mais um entre tantos. No salão de eventos de Davos, ele reforça essa pretensão com a recusa, carregada de simbolismo, de se enfileirar com os outros professores de filosofia num lugar marcado. As pessoas cochicham, murmuram, se viram: Heidegger chegou. O evento pode começar.