Trecho do livro
A uns trinta metros, vimos uma mulher de uns cinquenta anos que atravessava o parque com umas sacolas de compras. Por um instante, tudo permaneceu imóvel. Tive a sensação de que tanto Maia quanto eu tentávamos enfrentar mentalmente a sensação de que algo inevitável estava prestes a acontecer. A garota mais velha ficou de pé. Apesar de desgrenhada, sua silhueta era delineada quase como um felino e tinha essa franqueza que o corpo só manifesta na adolescência. Chamou as crianças ao seu redor e, sem dizer nada, todas ficaram de pé e se aproximaram da mulher a passos rápidos. A garota mais velha parou em frente a ela e disse algo. A sua
[leia mais]
A uns trinta metros, vimos uma mulher de uns cinquenta anos que atravessava o parque com umas sacolas de compras. Por um instante, tudo permaneceu imóvel. Tive a sensação de que tanto Maia quanto eu tentávamos enfrentar mentalmente a sensação de que algo inevitável estava prestes a acontecer. A garota mais velha ficou de pé. Apesar de desgrenhada, sua silhueta era delineada quase como um felino e tinha essa franqueza que o corpo só manifesta na adolescência. Chamou as crianças ao seu redor e, sem dizer nada, todas ficaram de pé e se aproximaram da mulher a passos rápidos. A garota mais velha parou em frente a ela e disse algo. A sua cabeça ficava mais ou menos na altura do peito da mulher, o que fez a senhora se inclinar um pouco e deixar uma das sacolas no chão, momento que um dos mais pequenos aproveitou para agarrá-la e sair correndo.
Eu não chamaria de cumplicidade o que havia em toda aquela situação. Tinha algo de obscuro e profundo demais para isso, uma espécie de coordenação tácita. A naturalidade com a qual cada uma das crianças adotou um papel em toda aquela coreografia do roubo respondia a algo mais do que a um ensaio ou um treinamento. Um garoto ou uma garota começava uma frase, o outro completava. Quando a senhora se deu conta de que tinham levado uma de suas sacolas, parou de falar com a garota mais velha e se virou bruscamente, momento em que a menina aproveitou para agarrar a sacola que ainda restava na mão e puxá-la com força. Mas a senhora manifestou uma resistência imprevisível. Não só não deixou que levassem a sacola, como reagiu com tanta energia que arrastou a garota. Um dos gêmeos se lançou sobre ela, então, agarrando-a pela bolsa, e mais um deu um pequeno salto e se pendurou direto no seu cabelo de maneira brutal.
A pobre mulher soltou um grito. Um grito de dor, é claro, mas muito mais de surpresa. O puxão foi tão forte que ela foi direto para o chão e as crianças aproveitaram a sua queda para arrancar tudo dela e fugir com o que pilharam: a bolsa e as duas sacolas de compras. Quando nos aproximamos dela, ainda parecia ter uma expressão mais próxima do desconcerto do que da humilhação. Fitou-nos com uns olhos esbugalhados e perguntou: “Vocês viram? Vocês viram?”.