Trecho do livro
A metáfora “deslocamento de placas tectônicas”, que neste livro aplico à dinâmica da migração, por sua magnitude, ocorreu-me em 2013, quando senti nas ruas a palpitação rumorosa da massa, a energia pulsando, inclusive a alegria da participação. Aqueles foram momentos de festa, a festa da rebeldia indignada, a celebração do protagonismo reencontrado. O Brasil se revoltava porque melhorara, reduzindo a pobreza, embora as desigualdades continuassem colossais. Os últimos dez anos tinham sido vividos numa clave positiva, o que elevara as expectativas e potencializara os atores sociais para reivindicar muito mais, em particular, melhores
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A metáfora “deslocamento de placas tectônicas”, que neste livro aplico à dinâmica da migração, por sua magnitude, ocorreu-me em 2013, quando senti nas ruas a palpitação rumorosa da massa, a energia pulsando, inclusive a alegria da participação. Aqueles foram momentos de festa, a festa da rebeldia indignada, a celebração do protagonismo reencontrado. O Brasil se revoltava porque melhorara, reduzindo a pobreza, embora as desigualdades continuassem colossais. Os últimos dez anos tinham sido vividos numa clave positiva, o que elevara as expectativas e potencializara os atores sociais para reivindicar muito mais, em particular, melhores serviços públicos, o fim da corrupção e mudanças profundas no sistema político. As manifestações declaravam o colapso da representação política tal como se exercia no Brasil. A marca das jornadas de junho não foi dada pela polarização entre partidos ou posições ideológicas. Estavam todos presentes e, para que isso ocorresse, proibiram-se bandeiras — ainda que o ideal tivesse sido a presença de todas elas, convivendo em ambiente pluralista.
Foi um momento apaixonante e contraditório. O fato de não ter havido nenhuma transformação visível diretamente derivada das mobilizações de 2013 não significa que elas não tenham sido muito importantes e que não tenham precipitado uma descarga feroz de energia coletiva. A partir das jornadas de junho, boa parte da sociedade passou a viver intensamente o que vivera antes, requalificando relações. Se já havia adversários, eles se transformaram em inimigos. Se já havia oposições, elas se converteram em confrontos. Se havia uma linguagem da disputa, ela se metamorfoseou em código do ódio. As polarizações se firmaram e enrijeceram. O mínimo denominador comum dos sentidos e afetos mobilizados foi a intensificação, a qual se projeta em categorias do entendimento, mas se realiza sobretudo como experiência. Essa intensidade tem significados que ainda não se manifestaram plenamente. Ela pode ser fonte de temor e esperança. Estamos diante da história, de seu abismo e de suas promessas.
As manifestações de junho de 2013 não inventaram a indignação e as paixões agonísticas no Brasil. Deram passagem à revolta acumulada. Soltaram as rédeas. Liberaram a raiva contida. O ódio impôs-se. Passou a reger dias e noites. Conquistou seu lugar no centro de nossos altares. Deus e diabo de nossa comum veneração. Quem falar do Brasil e não tratar do ódio não respirou o ar das ruas nem navegou pelas redes sociais. Parece que as rachaduras profundas da sociedade brasileira começaram a cobrar seu preço e a mostrar sua cara, por mediações as mais diversas.