Sou pirata da internet por causa da minha mãe, e ele sorriu ao lembrar do sorriso tranquilo da Líria, e quase acrescentou, há uma química entre nós, fechando a apostila, lição um, “O estudo da matéria”. Um trocadilho e uma frase ambígua: pela ambiguidade, e talvez pela sua mãe, você perdeu sua primeira mulher, ou, melhor dizendo (a autoestima é um treino, disse-lhe Batista uma vez; não cai do céu), ela perdeu você, como consolou sua mãe, sem lamentar muito, na verdade com um discreto ricto de triunfo, uma espécie de até que enfim, a infelicidade tem um limite, nem que seja minutos antes da morte — de que filme era essa frase? — Minha mãe adora filmes franceses e aquela atriz, a Jeanne Moreau. Madrasta, na verdade, essa palavra carregada de histórias infantis, e era como se Líria imediatamente se transformasse numa presa nas suas mãos sinistras de filho adotivo, o que os faria irmãos de infortúnio, e ele sorriu novamente diante do monitor: estava feliz, poderia dizer à sua mãe. Que também era uma falsa mãe, mas num outro sentido. Valeria a pena contar à Líria, em nome de alguma intimidade futura? A intimidade futura. Como se toda mulher, a sua simples sombra, fosse uma promessa de intimidade, sob cuja proteção ele seria enfim um homem verdadeiro. Fechar os olhos e beijá-la, e ele fechou os olhos por um segundo, cara, quer um conselho? — e o conselho veio antes da resposta, jamais se meta com alunas. Ele ouviu isso do seu sólido sócio, Batista, o homem que teve a ideia brilhante de abrir uma oficina de texto para vestibular, primeiro uma saleta alugada na Voluntários da Pátria, que foi ficando pequena, depois uma ampliação na Doutor Faivre, agora uma casa, e em seguida, na mesma Doutor Faivre (É perto da universidade, perto do centro, perto de tudo, melhor lugar impossível), dois andares maravilhosos, dez anos de contrato de aluguel, mas eu preciso de sócios para a ampliação. Pensar grande. Turmas regulares, quem sabe; e agenciamento local de aulas particulares diferenciadas. Só professor fera. Preço alto, à altura da qualidade. Turmas com no máximo dez alunos. Matemática, história, literatura, tudo. Você entra com a química, que ninguém sabe o que e nem como ensinar. Como era que eles te chamavam lá no Êxito Vestibulares? “O melhor professor de moléculas do cursinho”, e eles riram. Professor de moléculas — eu acho que é o que sou mesmo, na sala de aula e na vida real. Como se não quisesse pensar muito, no excesso de especulação o desejo se perde (o rosto de Líria nítido diante dele, os olhos com estrias azuis, bonitas e leves, praticamente uma menina, eu não entendo nada de química, professor; preciso de um reforço. Faço psicologia, que vou levando de qualquer jeito, mas quero fazer medicina, que e outra história, bem mais difícil de entrar), digitou jeane morau IMDB, e o Google corrigiu para jeanne moreau e logo em seguida ele pulou de Louis Malle para Ascenseur pour L’Echafaud, o que será echafaud? — “cadafalso”, Elevador para o cadafalso, ele traduziu no Google (o filme não é lá essas coisas, um noir europeu, disse-lhe o Beto, mas tem uma puta trilha sonora do Miles Davis, é do caralho, e ele achou graça, esses intelectuais refinados são assim, você usa palavrões para dar aulas de literatura por alguma influência do padrão cultural do governo? Que metal o presidente seria na tabela periódica?, brincou alguém, e alguém respondeu merda, soltando uma gargalhada em seguida, e um terceiro acrescentou num resmungo audível enquanto saía de perto, bem, o ouro da tua tabela deve ser o presidiário, o ladrão filho da puta), e dali saltou para btbit.org, copia e cola o título do filme, uma chinesa seminua quase sem peito num quadradinho infechável olhou para ele do canto do monitor com olhar ingênuo e oferecido em movimentos coleantes e repetitivos do GIF, mas ele desviou os olhos à série de torrents que se abria, clicando em seguida na opção size, do maior para o menor tamanho, quem sabe achava um arquivo ripado de blu-ray, mas o maior era um MKV de 4.49GB, não cabe no pen drive formatado em FAT32 (ou mandava pelo Transfer All? Não, melhor entregar pessoalmente o pen drive, conversar ao vivo, explicar os detalhes, manter a companhia) — merda, sempre dá um trabalhinho reduzir arquivo.