“Neste milagre de beleza, força e simplicidade, Jean-Claude Grumberg nos presenteia com um clássico instantâneo.”
Le Canard Enchaîné
Trecho do livro
Era uma vez, num grande bosque, uma pobre lenhadora e um pobre lenhador.
Não não não não, sossegue, não é O Pequeno Polegar! De jeito nenhum. Eu mesmo, assim como você, detesto essa história ridícula. Onde e quando já se viu pais abandonarem os filhos porque não podem alimentá-los? Ora essa…
Portanto, naquele grande bosque reinavam uma grande fome e um grande frio. No inverno sobretudo. No verão, um calor sufocante abatia-se sobre o bosque e enxotava o grande frio. Em compensação, a fome era constante, mais ainda naqueles tempos em que a guerra mundial assolava ao redor daquele bosque.
A guerra mundial, sim sim sim sim sim.
Co [leia mais]
Era uma vez, num grande bosque, uma pobre lenhadora e um pobre lenhador.
Não não não não, sossegue, não é O Pequeno Polegar! De jeito nenhum. Eu mesmo, assim como você, detesto essa história ridícula. Onde e quando já se viu pais abandonarem os filhos porque não podem alimentá-los? Ora essa…
Portanto, naquele grande bosque reinavam uma grande fome e um grande frio. No inverno sobretudo. No verão, um calor sufocante abatia-se sobre o bosque e enxotava o grande frio. Em compensação, a fome era constante, mais ainda naqueles tempos em que a guerra mundial assolava ao redor daquele bosque.
A guerra mundial, sim sim sim sim sim.
Como pobre lenhador fora requisitado para trabalhos de interesse público — em benefício apenas dos vencedores que ocupavam cidades, aldeias, campos e florestas —, era portanto pobre lenhadora que, do amanhecer ao crepúsculo, percorria o bosque na esperança, volta e meia frustrada, de abastecer seu minguado lar.
Felizmente — para alguma coisa serve a desgraça — pobre lenhador e pobre lenhadora não tinham filhos para alimentar.
Todo dia o pobre lenhador agradecia aos céus por essa graça. Quanto à pobre lenhadora, lamentava-se disso, secretamente.
Não tinha filho para alimentar, decerto, mas tampouco filho para querer bem.
Por isso, rezava aos céus, aos deuses, ao vento, à chuva, às árvores, até ao sol quando seus raios perfuravam a folhagem, iluminando a borda de seu bosque com uma transparência ofuscante. Suplicava assim a todas as potências do céu e da natureza que se dignassem de lhe conceder enfim a graça da vinda de um filho.
Pouco a pouco, com a idade chegando, compreendeu que todas as potências celestes, terrestres e feéricas tinham se coligado ao lenhador seu marido para privá-la de um filho.
Então, daí em diante rezou para que pelo menos cessassem o frio e a fome de que sofria de manhã à noite, de noite como de dia.
Pobre lenhador levantava-se antes do amanhecer a fim de dedicar todo o seu tempo e todas as suas forças de trabalho à construção de edifícios militares de interesse geral e até general.
A pobre lenhadora, ventasse ou chovesse, nevasse ou reinasse aquele calor abafado que mencionei a você, essa pobre lenhadora, portanto, percorria seu bosque em todas as direções, recolhendo cada raminho, cada lasquinha de madeira morta, apanhada e arrumada como um tesouro esquecido e redescoberto. Também recolhia as raras armadilhas que seu marido lenhador montava de manhã quando ia para sua labuta.
A pobre lenhadora, você há de convir, dispunha de poucas distrações. Caminhava, com a fome no ventre, remoendo na cabeça desejos que agora já não sabia como formular. Contentava-se em implorar aos céus que comesse, ainda que um só dia, o suficiente para matar a fome.
O bosque, o seu bosque, a sua floresta, estendia-se vasto, cerrado, indiferente ao frio, à fome, e desde o início daquela guerra mundial, homens requisitados, com máquinas poderosas, tinham perfurado o seu bosque em toda a sua extensão a fim de instalar trilhos naquela trincheira e, fazia pouco, inverno como verão, um trem, um único trem passava e repassava naquela via única.
Pobre lenhadora gostava de ver passar aquele trem, o seu trem. Olhava para ele febril, imaginava viajar também, arrancando de si aquela fome, aquele frio, aquela solidão.
Pouco a pouco regulou sua vida e seus afazeres pelas passagens do trem. Não era um trem de aspecto sorridente. Simples vagões de madeira com uma espécie de lucarna única guarnecida de grades, que enfeitava cada um deles. Mas como pobre lenhadora nunca tinha visto outros trens, aquele lhe convinha perfeitamente, sobretudo desde que o marido, respondendo às suas perguntas, declarara em tom peremptório que se tratava de um trem de mercadorias.
Essa palavra “mercadorias” acabou de conquistar o coração e inflamar a imaginação da pobre lenhadora.
“Mercadorias!” Um trem de mercadorias… Agora via aquele trem transbordando de mantimentos, roupas, objetos, via-se percorrendo aquele trem, servindo-se e se fartando.
Aos poucos a excitação deu lugar à esperança. Um dia, talvez um dia, amanhã, ou depois de amanhã, ou pouco importa quando, o trem terá enfim piedade de sua fome e, ao passar, lhe dará como esmola uma de suas preciosas mercadorias.
Logo ela tomou coragem, aproximando-se o mais possível do trem, chamando-o, gritando por ele com um gesto, implorando-o com a voz, ou simplesmente saudando-o quando estava longe demais para chegar a tempo.
Por fim, de vez em quando uma mão passava por uma das lucarnas e lhe respondia. Também de vez em quando uma daquelas mãos lançava para ela alguma coisa que ela então ia correndo pegar, agradecendo ao trem e à mão.
Quase sempre, era apenas um pedaço de papel que ela desamassava com cuidado e imenso respeito antes de dobrá-lo de novo e guardá-lo sobre o coração. Seria o prenúncio de um presente futuro?
Muito tempo depois da passagem do trem, quando caía a noite, quando a fome se fazia sentir demasiado, quando o frio a fustigava mais, e a fim de não sentir um grande aperto no coração, ela tornava a desdobrar o papel com um respeito religioso e contemplava os rabiscos ininteligíveis, indecifráveis. Não sabia ler nem escrever, em nenhuma língua. Seu simplório marido, de seu lado, sabia um pouco, mas ela não queria dividir com ele, nem com ninguém, o que seu trem lhe oferecia.